quarta-feira, 22 de abril de 2009

JOSÉ CARLOS BARROS

DO QUE A VIDA PODERIA TER SIDO


Os amigos juntam-se e falam do passado,
da música que já não se ouve na rádio,
do inverno em que choveu semanas a fio
e o rio saiu das margens para desenhar

nos troncos das árvores os círculos imperfeitos
da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres
que se renderam para sempre às palavras do amor,

das perdizes caindo de asa nas encostas
iluminadas da urze, das corridas memoráveis
do vinte e cinco de abril, das tardes de domingo
que haveriam de envergonhar a uefa

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios
dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos
falam: do que a vida poderia ter sido
se não fosse a filha da puta da vida que foi.


Criatura, n.º 3, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.