sábado, 29 de junho de 2013

MANUEL DE FREITAS

BECHEROVKA


Norueguesa, alta, de um moreno
duvidoso que sorria muito.
Pedia-me insistentemente para não estar
triste como deveras estava.
E pagou-me, creio, o último copo,
antes de me perguntar "o que fazia".

Escrever, sobre a morte, não é
exactamente uma profissão.
Mas foi a resposta que lhe dei,
enquanto um guardanapo qualquer
abreviava, só para ela, a minha "obra".

Nunca saberei se percebeu a letra,
se comprou os livros, se chegou
a ouvir o que em péssimo francês
lhe tentei dizer nessa noite, a mais perdida.

Os versos são quase sempre isto: um modo
inaceitável de dizer que não tocámos o corpo
que esteve, por uma vez, tão próximo
de nós – e que nem um nome breve nos deixou.


A flor dos terramotos, Averno, Lisboa, 2005.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

JOÃO ALMEIDA

OFÍCIO DE TAXIDERMIA III


Contava-me sem preço
Como o amarelo no peito do papa-figos
Parava com felicidade o desatino e a morte

Está demente e já ninguém se recorda
De o ver escanhoado
E com dinheiro no bolso

E podia haver alegria na merda da situação
Aquela que os revoltosos levam
Nos explosivos
Na decisão repentina

Mas por trás dos olhos só um cão seco
– Fala-me dos coelhos, João.


Telhados de Vidro, n.º 18, Averno, Lisboa, 2013.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

EMANUEL JORGE BOTELHO

DIAGNÓSTICO DO SÍTIO POR QUEM ESTÁ NO LUGAR

para Antonin Artaud

dêem-me um muito longe que não arda.
mascar vidro não é profissão, dizem-me,
nem deixa que o amor da morte me leve
para perto de lisura do vinho.

embora não me vou,
e se for irei ficando,
sem oiro no rosto
nem coice que me peça cicatriz.
fico.
ato o amanhã no dedo de pescar
e saco-lhe a guelra quando picar
o calendário.

não tenho tempo.
eles não sabem onde estou
e só por isso não me mato.
quero deixar um açoite armadilhado,
antes que a data prima
a leveza do gatilho.

fico.
fico com um pão a morrer no bolso
e os lábios secos de nomes
para dar a cada dia.

que horas são, meu amor?
a que horas chega a hora certa?


Telhados de Vidro, n.º 18, Averno, Lisboa, 2013.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

RUI CAEIRO

RETRATO


Uma demora lenta nas palavras
um calor bom na palma das mãos
uma maneira de gostar das pessoas e das coisas
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos o café a ferver
ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo
viver viver roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo das mãos e do corpo
sem regatear o amor à flor da pele
olhar em torno de si perdida ou esperar o verão
e saber de um saber obscuro que o calor
todo o calor é de mais dentro que vem


Rua dos Correeiros, n.º 60, 1.º esquerdo, AA. VV., Paralelo W, Lisboa, 2013.