terça-feira, 26 de maio de 2015

ANTÓNIO BARAHONA

ERA UMA VEZ EU


Era uma vez
Eu nu e cintilante
prostrado ante a Magnífica
Mulher Mágica
Eu num submarino
a percorrer-me as veias
Eu a chicotear um cavalo sem pernas
Eu a partir ostras ao centro do pátio
Eu a separar a treva do vidro
Eu amestrando um exército de formigas brancas
Eu no fundo de uma cratera
a escrever o poema diligente do Sol


Pássaro-Lyra, Averno, Lisboa, 2015.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

JOSÉ MANUEL TEIXEIRA DA SILVA

ÀS ESCURAS


Seria a primitiva luz
das casas a mais antiga
Conhecíamos os caminhos
pelo baque da noite
um sopro tão retirado do mundo

O tempo demove as moradas do tempo
e no mais derradeiro olhar
já não saber como perder-te
essa súbita porta do dia
algo assim, às escuras

Música de anónimo, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2015.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

ALBERTO PIMENTA

A CADÊNCIA DOS BICHINHOS DE CONTA


os bichinhos do ouvido
fazem de conta que escutam
o que os bichinhos de conta
fazem de conta que contam

assim tudo corre bem
para uns e para outros
nem uns dizem que são mudos
nem os outros que são moucos


Bestiário lusitano, 2.ª edição, Momo, Lisboa, 2014.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

DO QUE ME LEMBRO


Lembro-me da música dos lugares a oeste
dos planos para esse reino amado
que pretendemos tanto tomar de assalto
antes dos brados do fogo

Mas as minhas mãos traziam já
uma sina mais escura, nem a noite

Qualquer penumbra serviu
ao meu coração oculto
a miséria do inverno
o treino dos falcões nas escarpas
a glória iludida
em que se consumiu o tempo


A noite abre meus olhos [poesia reunida], 3.ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa, 2014.