quinta-feira, 25 de agosto de 2016

RUI NUNES

(REGRESSO)


Tudo o que faço não passa de um preâmbulo. Mas, contra todos os preâmbulos, ou como todos os preâmbulos, estes só anunciam outros preâmbulos:
a negra palavra do abutre.
A negra paisagem do abutre


A crisálida, Relógio d'Água, Lisboa, 2016.


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

ALBERTO PIMENTA

NÃO SEI


Poéticos, os deuses?
Eles não têm sangue.

Debaixo do céu inerte,
a ave que foi trespassada
e cai como um trapo
no tronco de árvore de Botticelli
tinha sangue.
Ou a pantera
do Jardin des Plantes
que incansavelmente
percorre a sua jaula
de um lado para o outro,
cerrando lentamente as pálpebras
sobre o mundo, tem sangue.

Ou as três gotas de sangue na neve
que causam o assombro
abismado de Parsifal
têm origem viva, que se torna poética
quando chegam a ele.

A poesia
são gotas, inúmeras,
secas ou ainda frescas,
sangue, sempre sangue,
o preço líquido
que a vida paga
pela fuga constante
a si mesma,
a caminho
do que não existia
antes de
ela lá ter chegado.

A poesia
quer que cheguemos,
aonde ela chegou.

– E chegamos?

Claro que não.

– E os deuses?

Esses incutem
pavor e esperança:
pavor na vida que temos,
feita do pó do universo,
esperança em chegar a eles
depois dela.

– E chegamos?

Não sei. A qual deles?


Nove fabulo, o mea voz: De novo falo, a meia voz, Pianola, Lisboa, 2016.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

SANDRA ANDRADE

FORTRESS OF SOLITUDE


deixarias a chave no hall sem nunca mais te preocupares em teres um local secreto. imagina o sono. o acordar. usaria a chave para pequenas habilidades quotidianas. sempre seguros, nunca mais alerta. o mundo em implosão lá fora. mas a gaveta verde fechada com livros de petrologia. e a vida perigosa apenas nas arestas. imagina o relógio. a balança. o sono. os caminhos já não serem estreitos.


Doppelgänger, DSO, Coimbra, 2016.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

TERESA VEIGA

[ENQUANTO ESTAVA PARADA]

[...]

Enquanto estava parada, a dois metros de distância, sem me atrever a esboçar um movimento para não o acordar, percebi que a força daquele homem, descontada a robustez física, lhe vinha de não tomar nada por certo, de viver simplesmente o dia-a-dia. Antoine dormia pesadamente, imerso no sono, com a imobilidade de um animal que hiberna ou de alguém fulminado por um tiro. Dormia com a mesma convicção que põe em tudo o que faz, com a ressalva de que nele convicção e desprendimento se equivalem e confundem. Não sofria, não pensava, não tinha sonhos, visões, arrependimentos. Simplesmente dormia.

[...]

"Antes da Revolução", Granta, n.º 7, Tinta-da-China, Lisboa, 2016.