segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

JOSÉ CARLOS BARROS

EM VEZ DO SILÊNCIO


Riscar aos poucos, uma
a uma, as imagens, as palavras.
Reduzi-las a um breve núcleo
substantivo. E depois apagar
de novo, uma e outra, uma
e outra. Até à ilusão
da nascente, à nuvem
das águas subterrâneas.

Por uma poesia
que não dissesse. Que não enunciasse.
Que apenas deixasse
nas folhas das árvores
o que se esconde por dentro
do obscuro rumor
indecifrável das palavras.

A arquitectura e a árvore:
um sistema filosófico
dividido entre a perfeição
da matemática e
a claridade iniludível
da experiência. Entre
a razão e a verdade.

Apagar as palavras, uma
a uma, até à ilusão
da primitiva vertigem
criadora. As raízes
da árvore erguendo-se
em vez do silêncio
e em vez do poema.


Sulscrito, n.º 1, Faro, 2007.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

PLÁTANOS


Depois de ter fechado tudo, abro de novo a porta
e corro, cambaleante, para a vazia escuridão
assusta-me a certas horas a companhia
do que não adormece
a resistência disso
que permanece no nosso espaço
movido por outras forças

Mas também acontece acender primeiro a luz
e só depois sentir um medo louco da casa que me acolhe
dos seus redemoinhos imperceptíveis
que julgo cada vez mais perto
como se estivesse para ser morto
às mãos do próprio Deus

Não sei bem acordar vivo destas coisas:
por vezes aproveito o ruído do entardecer e grito muito alto
ou deixo-te um instante só (um instante só)
para fechar os olhos que tanto ardem
ou atiro das margens folhas ao rio
para medir o tempo de uma vida
a naufragar


Relâmpago, n.º 12, Lisboa, 2003.

domingo, 21 de dezembro de 2008

A. M. PIRES CABRAL

OVO


Parece-me isto um comboio,
mas pode ser um ovo.

Bem entendido, um ovo enjeitado,
por chocar.

Bem entendido, um ovo por chocar
que nunca eclodirá.

Onde os passageiros
se vão bebendo a si mesmos na gema
e dão bicadas fortuitas
e cada vez mais raras
na casca que não abre por dentro.


Que Comboio É Este, Teatro de Vila Real, 2005.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

INÊS LOURENÇO

PENÉLOPE


Encontrava-a aos domingos
com a teia de crochet, perto
do estádio. Ulisses regressava
a Ítaca, no fim de mais uma
jornada de águias, dragões
e outros monstros. Argos
no banco de trás, abanava a cauda
para não morrer de velho.


A Enganosa Respiração da Manhã, Asa, Porto, 2002.

domingo, 14 de dezembro de 2008

MANUEL DE FREITAS

DUAS VEZES NADA


É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.

Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.

Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.

Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:

não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas,
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.


[Sic], Assírio & Alvim, Lisboa, 2002.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

ANA PAULA INÁCIO

HOMENAGEM A 4 POETAS E 1 CINEASTA


Livra-me das tentações
de fugir ao fisco
e que em Fevereiro pague sempre
os meus impostos.
Afasta-me do supérfluo e
da vaidade e recorda-me que
um dia hei-de ter hemorróidas.
E não me deixes cair no pecado
da ideologia
para que não leve com o proletariado nas trombas.
Guia-me pelos caminhos do amor
até um centro comercial
onde o amado me acompanhará
a experimentar um a um cada vestido.
E, por último, faz com que
todo o iogurte que coma seja
— foda-se! —
de morango.


Telhados de Vidro, n.º 11, Averno, Lisboa, 2008.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

ADÍLIA LOPES

MÚSICA DA RUA JOSÉ ESTÊVÃO, EM LISBOA


O portão do Pátio do Duarte

Os toques do quartel

O sino dos Anjos

Os pardais

As folhas dos choupos

*

Foi bom não me ter casado. Não tenho cabeça para outra cabeça.


Telhados de Vidro, n.º 11, Averno, Lisboa, 2008.

sábado, 6 de dezembro de 2008

CARLOS BESSA

APENSAR


Eu vou pensar. Ah, estúpido.
Pensar, não se pensa em português.
Em francês, sim. Ou, quem sabe,
em alemão. De resto,
pensar é bom se houver
um pouco de Ricoeur, Derrida
ou será de angina de peito?

Está bem, não penso.
Cito-te. Dou-te a mão.
Afinal, tu é que sabes,
que orientas,
que espalhas a vaidade
e a razão.


Telhados de Vidro, n.º 11, Averno, Lisboa, 2008.