quarta-feira, 31 de julho de 2019

ANTÓNIO BARAHONA

MEMÓRIA DE JOSÉ LUÍS PAREDES DA BEIRA


Tiravas o retrato, no Rossio, ao espelho,
a crianças, no meio d'amestrados pombos:
davam plo nome e vinham pousar-te nos ombros,
ou no pulso da tua mão cheia de milho.

Eram teus olhos dum azul tão claro
que neles se avistava os pombos a voar
num céu primaveral: tinhas o dom de dar,
amigo tão discreto, puro e raro.

Que foi feito de ti? Esta cidade alui:
incauta, vai matando a sua arquitectura
e os actores rituais nos últimos redutos.

Onde nascia o Sol, agora o Sol se esvai;
e onde havia Ócio, agora há só Usura;
e onde havias tu, agora há pombos mortos.


A fina flora do crepúsculo, Averno, Lisboa, 2019.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

JOSÉ CARLOS BARROS

AS LEIS DO POVOAMENTO


À casa regressam agora as perdidas
sombras da infância. Os exercícios de
caligrafia escondidos na cómoda,
os paus do inverno no piso
térreo, o rumor do ouro poisado por
entre um postal e um vidro
de perfume, as raparigas que
paravam na escaleira erguendo a cabeça
na direcção do vento, o sinal
obscuro das mãos erguidas
em prece. E é como se as leis do
povoamento determinassem um lugar
central a tudo o que ao longo
dos anos irremediavelmente se perde.


O uso dos venenos (segunda edição), Língua Morta, Lisboa, 2018.