sábado, 30 de agosto de 2014

JOSÉ MIGUEL SILVA

NOCTURNO


A arte já sabemos nasce
da imperfeição das coisas
que trazemos para casa
com o pó da rua
quando a tarde finda
e não temos água quente
para lavar a cabeça.

Tentamos regular
com açudes de orações
o curso da tristeza
mudamos de cadeira
e levamos a noite
a dizer oxalá
como se a palavra
praticasse anestesia.


Ulisses já não mora aqui, 2.ª edição, revista, Língua Morta, Lisboa, 2014.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

ISABEL NOGUEIRA

[PELA JANELA]

[...]

Pela janela, o ar esvaía-se por entre os dedos.
A música competia com o vento.
E as coisas eram o que eram.

[...]

A kind of blue (com Paulo Furtado), Alambique, Lisboa, 2014.

sábado, 16 de agosto de 2014

ROSA MARIA MARTELO

CORTES


Sobre a mesa iluminada pela luz da tarde, uma jarra de flores expõe a beleza cortada, agonizante, assassinada pelo amor da beleza, que a trouxe para dentro de casa, para morrer. Muito juntas, as flores sobrevivem ainda, e encenam no pouco tempo que resta o mundo de onde vieram. Parecem vivas, quase deixam esquecer que são o grande ramo da morte a emergir de um frasco transparente. A contemplação da beleza: acredita na suspensão absoluta do instante, mesmo se tudo em volta lhe diz que não é bem disso que se trata. Repara, alguns ramos já começam a secar.


Matéria, Averno, Lisboa, 2014.