quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

RUI PIRES CABRAL

UMA CASA NA PADARIA

para a Daniela Gomes

Era uma casa qualquer onde a linguagem se sentava
como uma rainha. Não havia terra que ficasse
perto, o próprio ar já nos mordia os braços
e havia um rato morto na cozinha.

Pintávamos criaturas incompletas no vermelho inteiro
das bisnagas, por vezes o nosso retrato às avessas
com sombras no coração. Pelos telhados
os gatos vinham visitar-nos com cautela, as plantas
duravam pouco nas unhas de cada mês.

Havia tempo de sobra e um lance de degraus
que subia vacilante até onde fosse preciso.
E nós lá em cima cheios de graça,
com frio nas mãos e tinta nas mangas.


A super-realidade (2.ª edição, revista), Língua Morta, Lisboa, 2011.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

DAVID TELES PEREIRA

(EIN ZECHER IM MEER)

Seinen Kaisern und Helden
das geheime Deutschland

Piotr Michnik, o historiador, enforcou-se há duas semanas.
Quando finalmente o descobriram, oito dias depois,
era como se o branco encolher dos olhos rasgasse o coração do céu.
Formigas sobre o apodrecido revestimento do corpo,
cansado deste mundo graúdo,
saboreavam o seu rosto com melhor apetite.

Para quem morre só uma vez, estamos todos demasiado mortos.
Tome-se como exemplo o doutor Michnik
e a sua imensa biblioteca onde se enforcou.
Agora, para sempre, os dois corpos de um rei destroçado
repousam sobre o seu império de crepúsculos
e uma torrente de mar rude, incessante,
colheu-nos em murmúrios os ossos da história.

Má sorte a minha ou talvez não. Agora que penso
nisto à distância de uma chávena de café
a sua refutação parece-me óbvia:
Jovem, não vás à pesca com esse isco melancólico,
a morte raramente chega como chuva amável do céu
ao lugar em que cai
e nunca são as tuas ideias o que os insectos querem,
é o teu cadáver.


Criatura, n.º 6, Núcleo Autónomo Calíope da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2011.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

ANTÓNIO GREGÓRIO

CARPINTARIA


Sobretudo tive pena de quem lhe fez
o caixão porque a morte creio é cheia de horas
mortas e o meu avô carpinteiro igual a
ele irá perscrutar cada pormenor da
obra do seu caríssimo colega. Já
o vejo desdenhoso abanando a cabeça
descarnada aos primeiros sinais de cedência
prematura da madeira à pressão da terra.



Criatura, n.º 6, Núcleo Autónomo Calíope da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2011.

sábado, 10 de dezembro de 2011

A. M. PIRES CABRAL

PERGUNTAS


Alguém me permitiu que chegasse a esta idade
fazendo perguntas. Boa alma, essa
que leu em mim o aguilhão das dúvidas
e o achou legítimo e me permitiu que às vezes
fizesse umas perguntas de trazer por casa.

As outras perguntas, as menos correntes,
aquelas a cujo cofre só sábios têm acesso
(e para as quais aliás nunca encontram resposta,
tal qual eu para as minhas – estou vingado),
essas foram-me escondidas
como de uma criança o frasco da compota.

Ainda assim, impostos dessa forma
limites aos meus passos inquietos,
agradeço o benefício. Porque enfim

podia ter nascido sem a urgência
de inquirir coisa nenhuma.
Podia dar-me por satisfeito assim,
aninhado numa rábula qualquer.
Ronronar como um gato que o dono afaga
maquinal atrás da orelha enquanto lê.

Com acesso garantido a um lugar de balcão
com vista para a bem-aventurança.


Cobra-d'água, Cotovia, Lisboa, 2011.