quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

JOÃO PEDRO MÉSSEDER

DELFOS (II)


A arte
da memória
se compõe

do canto
obstinado
das cigarras

do prumo
branco
das colinas

do fruto
ainda verde
do cipreste


De um Caderno Grego, Edições Plenilúnio, Porto, 2003.

domingo, 27 de dezembro de 2009

ROSA MARIA MARTELO

SOMBRAS


A noite não é o avesso do dia, sequer o seu contrário – de noite os motores do dia trabalham ainda, desengatados, um pouco como bate o coração de quem dorme. Roldanas lentas movem-se fora dos eixos do sentido, trazem para dentro dos quartos a oscilação das sombras, o vento nas árvores, ruídos ao longe. O ar enegrece contra os muros, destila uma liga muito ténue, reúne as peças soltas. Até de olhos fechados se pressente o brilho das coisas quietas, as idas e vindas, os êmbolos, a inquieta vibração de estarem vivas.


A porta de Duchamp, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

RUI MIGUEL RIBEIRO

CORAÇÃO DE VIDRO


Faço o meu trabalho de desocupação.
De vazios que não me exigem manhãs,
nem horários, para ficarem marcados
em calendários prescritos: valetas
de dias sobre datas passadas.

A minha tristeza não tem trocos
nem desenganos. Nem com eles
o direito de encontrar, ao tacto
da superfície de alcatrão, aquilo
com que os meus membros silenciosos

respondem – a chamada aos bolsos
de pedras partidas, que lanço
contra um coração de vidro.


Criatura, n.º 4, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

domingo, 20 de dezembro de 2009

DAVID TELES PEREIRA

RUA ADAMCZEWSKI


Na distante memória, a estreita rua Adamczewski
contorna o olhar até se abrir em direcção ao cemitério
que fica no cimo da colina, onde as crianças brincam
aos castelos numa árvore sem pássaros.

Aqui a sombra da morte é tão presente quanto a do fim de tarde;
felizmente ainda mal passámos do meio-dia e os velhos
bebem aguardente de ervas no café à espera de quase tudo,
menos do grito de uma flor que aguarda um destino.

Mas eis que ele soa e o nosso tempo altera-se,
como se de ouvido encostado ao chão pudéssemos
associar o triunfo das formigas ao dos nossos antepassados
a caminhar lado a lado pela Rua Adamczewski acima
em direcção ao cemitério, de braços dados, enquanto cantam
Se não são os mortos que nos guardam,
porque é que os deitamos aqui em cima?


Criatura, n.º 4, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

LYRICA




domingo, 13 de dezembro de 2009

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

XIII


Tenho para mim neste derrotado começo de século
neste farrapo de país em que a própria língua virá em
breve a ser idioma secreto
e a quem ninguém chamará pátria nem tão-pouco
nação, apesar da vigilância sobre a nossa existência
ser matéria autocrática e clerical,

tenho para mim que nesta geografia
a casa rural é a expressão mais pura que sobrevive,
qualquer coisa ao alcance
entre o castelo e a igreja, entre a cruz e o adro,
ornamento que sustenta o carácter da arte e da paisagem.
Expressão do movimento, de uma cor.

Ao fim do pátio, onde a alma da casa termina, está
uma taça de granito. Bebedouro de pássaros nos meses
quentes, cobre-se de medronhos
pelos cálidos dias outonais do verão de São Martinho.
Em oferta, do áspero amarelo ao quente laranja,
no contraste da pedra o meio dia intensifica de brilho

cambiantes vermelhos – rosa vivíssimo e sangue
esmagado – o calor abre em ouro o corpo do fruto,
insectos despertam de um íntimo, longínquo mundo de
treva, como se subissem da mais antiga morte, da mais profunda vida.


Mãe-do-fogo, Relógio d'Água, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

LUÍS FILIPE CASTRO MENDES

A ILHA DOS MORTOS REVISITADA


"Um sonho acordado" foi o que a compradora
pediu ao pintor.

E o que é mais a morte do que um sonho acordado,
de que deslizam as roupas, ao se entrever na água
a sombra do que sequer chegámos a ser?

Muitas vezes me perguntei
onde vim encontrar esta ilha.
Sei-o agora, mas é já muito tarde para partilhar
este saber que nunca mais será um privilégio.
Por isso olho esta figura de branco, eternamente de costas para nós,
ela olha de frente a água e a morte,
e pergunto-me se o caixão não está vazio.



Relâmpago, n.º 23, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2008.

domingo, 6 de dezembro de 2009

FERNANDO GUIMARÃES

A ÚLTIMA PIETÀ DE MIGUEL ÂNGELO


Desfalecido, o corpo que se encontra
com outro, quando espera aquele afago
há muito procurado e que se via
surgir de um novo gesto, ao receber

o que equivale à forma ali suspensa
numa curva serena de piedade
materna, agora firme porque o caule
de uma planta existe para erguer

o perfil, a medida dos seus rostos
que vemos junto às pétalas trazidas
só pelo sofrimento. Ali ficaram

mais juntos, quase ocultos, e detinham
a fuga dos seus corpos, nesta ausência
que foi nossa também. Do outro lado.


Relâmpago, n.º 23, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2008.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

RUI ALMEIDA

[O HOMEM QUE SE OLHA AO ESPELHO SABE]


O homem que se olha ao espelho sabe
Que vai morrer. Não sabe quando ou como,
Mas reconhece a finitude da vida
– Da sua vida, de cada vida.

Contempla o processo biológico
E admira-se perante o zelo do tempo
A modelar-lhe a velhice no rosto.


Lábio Cortado, Livrododia, Torres Vedras, 2009.