domingo, 19 de junho de 2016

NUNES DA ROCHA

ORÁCULO


do peito aberto saiu larva sem eco
caligrafia ou certeza
disse o deus

ensinar-te-ei modos de atravessar paredes
quando ninguém é perto
ou saudade

caminhar sobre as águas se o amor for ponte
sem arcos
e nela colhes líquenes de pedra

subir escadas quando a noite se cola aos pés
descalços se disseres adeus
nus quando à porta bateres

[...]

Cordoaria Nacional, Averno, Lisboa, 2016.

terça-feira, 14 de junho de 2016

MIGUEL DE CARVALHO

AUTO-RETRATO


I – Diário de navegação

Movo-me cintilante com bandarilhas solares entre arenas de pétalas mortas. Pressinto as canetas cravadas e adormecidas.

Arrasto o segredo mineral dos ventos e contemplo o verbo derramado pela raiz. Grito nas veias atrás do sangue para esculpir a cor.

Vou comigo, escapando à loucura, carregado de pólen no papel à sombra do gesto. Aprisiono os sentidos e as vigílias de quem espera a palavra surda.

Apaziguo o corpo numa ruína sedutora onde bebo a areia insone. Fecho as janelas atrás da espuma marítima.

Recordo-me sem saída.


Neste estabelecimento não há lugares sentados, Alambique, Lisboa, 2016.


quarta-feira, 8 de junho de 2016

INÊS DIAS

JOAQUIM E JUDITE

Para o Manuel

Fizera toda a viagem com ele ao colo.

Queria despedir-se junto ao mar,
mas as partidas são tão imperfeitas
se o coração é uma caixa de cinzas
demasiado enferrujada para abrir
ao vento. Mesmo agora, depois de lavada
a última partícula que se lhe colara
à pele, sabia que o amor passara a ter
o peso exacto das ondas e, por isso,
nunca mais deixaria de o ouvir.

E ria, apontando-nos mais um turista
à procura das marcas do milagre
na pedra. Como se não fosse milagre
suficiente cada volta do mar: sermos
ainda reconhecidos, sete passos
dentro da noite, quando andamos
pelo mundo a povoá-lo de fantasmas.


Sítio (com Manuel de Freitas), Volta d'Mar, Nazaré, 2016.

domingo, 5 de junho de 2016

MANUEL DE FREITAS

SÍTIO DA NAZARÉ, 1979


Não tenho a certeza do nome da senhora (que talvez se chamasse Maria Augusta) a quem os meus avós alugavam casa no Sítio, mas sei que era inequivocamente cigana e que a casa ficava mesmo ao lado da praça de touros. Eu dormia no corredor, numa cama minúscula escondida por reposteiros. Os avós entretanto morreram, e a minha mãe optou pelo campismo selvagem nos pinhais em volta, antes de se render ao fascínio terapêutico da praia da Consolação.

Desconheço se devo a essas remotas experiências a tristeza que ainda hoje associo ao Sítio. Mas parece-me evidente que a minha poesia evoluiu (se é que evoluiu) num sentido exactamente contrário: passou do campismo selvagem a um longo corredor vazio onde já não espero encontrar ninguém.


Sítio (com Inês Dias), Volta d'Mar, Nazaré, 2016.