domingo, 27 de novembro de 2011

JOSÉ MIGUEL SILVA

CORRENTE ALTERNA


Não sei o que é melhor neste jardim
amuralhado, se o aperto de viver
entre repouso e coerência, ou a injúria
de vogar entre palavras e mais nada,
dando visos de ilusão a criaturas

condenadas: a mesa posta à sombra
da figueira, a certezinha das roseiras
e das rãs, que não se cansam de louvar
a imolada providência dos insectos,
sem saberem da defunta Primavera.

O sol desaparece entre eucaliptos
e acácias infestantes. No laguinho
a noite tomba sobre folhas de nenúfar
e os peixes já recolhem para o fundo
o seu modelo de verdades sem mistura.

Está na hora de fechar este caderno
e acender o buzinão noticioso,
pois o espírito alimenta-se em atrito,
e a arte é um trajecto de nenúfar,
intervalo colorido, entre a luz e o lodo.


Serém, 24 de Março, Averno, Lisboa, 2011.

sábado, 19 de novembro de 2011

ANTÓNIO BARAHONA

CORRESPONDÊNCIA COM ALPHONSE DE CHATEAUBRIANT


Fugir, fugir o mais depressa possível
para o cume da montanha,
onde a neve não derrete
e, solitário, respirar neve,
tomar banho em neve,
esfregar-me com neve,
rolar na neve,
comer neve,
fazer-me, a mim próprio, de neve,
até sentir bater,
em redor de mim
e dentro de mim,
um coração de fogo.


Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea, Averno, Lisboa, 2011.

sábado, 12 de novembro de 2011

CARLOS POÇAS FALCÃO

"ICH HABE GENUG"


1.
O balouçar
da roupa sereníssima
no bairro das traseiras
recorda-me o engano
que ilumina em volta o mundo.
Não saltes tão de força, coração, mas também tu
oscila sereníssimo no tempo que ainda tens
para não desesperar

2.
E estava-se tão bem

Mas depois abriu
depois fugiu
desapareceu

Depois da tua morte
continua a claridade
a luz faz doer os olhos

E não podendo já
falar ao teu ouvido
nenhum segredo escuto
para dizer ao mundo inteiro

3.
Agora outra vez a caminhar
atraso de propósito o bater dos vários ritmos

Não estou contra
não vou contra
apenas subo um pouco
e desacelero

Assim vou desdobrando
um fio de oração sobre a cidade
Depois dos triunfos
e das pequenas mortes
é só pela humildade (a terra da alegria)
que posso regressar


Público, Lisboa, 12 de Novembro de 2011.

domingo, 6 de novembro de 2011

INÊS DIAS

LAPINHA


Para a Lorena


Às 21h25 a ilha fecha,
o último pássaro metálico
deixando para trás os portões
encerrados das lagoas.
É um tempo de aranhas
esquecidas das teias, aves
suspensas no voo, amigos
que invocam em silêncio as estações
e recordam ainda a Criação,
camada por camada.

Sobre os homens desce então
uma redoma de nuvens, que a estrela
única vem selar. Cada um risca
as fronteiras do sonho com sebes
de hortênsias ou muros de basalto,
esperando depois que as três
voltas do milhafre não o surpreendam
entre as espigas altas do mundo.

E o medo torna-se subitamente
navegável, mar de minúsculas
e carnudas conchas estendido
a nossos pés, para que possamos
sempre caminhar sobre
as águas.


Público, Lisboa, 22 de Outubro de 2011.