quarta-feira, 31 de março de 2010

JOÃO ALMEIDA

EM TEMPO DE MISÉRIA


desço por um jardim transparente
entre lodo e hortelã

andam assistentes sociais pelo bosque
à procura de pobres
agitam contas e berlindes

acaba aqui a rédea solta, há que escolher as armas

troco à sombra do derradeiro cipreste
dois versos e um dedo
por uma noite de sono e um detonador

Resumo: A poesia em 2009 [de Glória e eternidade], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

domingo, 28 de março de 2010

DAVID TELES PEREIRA

RECICLAGEM PARA C.


O deus do Eugénio
é muito mais verde
quando lido pelos teus olhos.


Resumo: A Poesia em 2009 [de Criatura, n.º 4], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

quarta-feira, 24 de março de 2010

ADÍLIA LOPES

A DOMADORA DE CROCODILOS


Todos os dias
meto a cabeça
na boca
do crocodilo

O meu feito é feito
de paciência

Já meti
a cabeça
no forno
estava farta
dos crocodilos
e dos amantes

Não tenho tido amantes
tenho tido crocodilos

Com os crocodilos
ganho o pão
e as rosas

Morrer é um truque
como tudo o mais

Dobrada
entre os crocodilos
dobrados
arrisco a pele

A pele é a alma


Resumo: A poesia em 2009 [de Dobra], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

domingo, 21 de março de 2010

MIGUEL-MANSO

NO NÚMERO DE OUTUBRO DA REVISTA WIRE


frente ao fotógrafo e ao leitor
o homem envelhecido parece que já não olha
Mitra o deus sol dos psicadélicos

noutra foto
no interior da revista o poeta está sentado
a uma pequena mesa de frente para a janela
onde as cortinas brancas filtram
a luz e o ruído da rua

sentado na cadeira de rodas
ele espera dentro da claridade
delicada da manhã

e depois durante a noite

assiste ao que resta do mundo
junto à máquina (a soft machine) de escrever
pousada no tampo (eu ia escrever
no tempo) da mesa

não sei se caem pétalas dentro
do olhar de Robert Wyatt não sei o que escreve
agora na tábua das constelações

essa realidade desabitada dos versos
e dos jardins


Divina música: antologia de poesia sobre música [de Contra a manhã burra], org. Amadeu Baptista, Conservatório Regional de Música de Viseu, 2009.

quarta-feira, 17 de março de 2010

JOSÉ MIGUEL SILVA

SONHOS POP


Baixo, guitarra, furor, bateria: o habitual
da insurreição juvenil, retiro de ofendidos
ou coisa que o valha, por todo um meio Inverno
de rotos acordes. Dizer que foi um sonho
é já efabular, se até os instrumentos eram
emprestados, os gritos de empestado, a pose,
o cuspo dos pês no microfone suburbano.
Não, não era isso. Não era sequer a música:

apenas a suspeita de nenhum futuro, como
berravam os piores cantores; o desconsolo
do real, tão alheio à fantasia do possível.
Quando tudo nos chamava pelo nome e
ninguém desconhecia que devíamos à morte
uma conta calada, um balúrdio de espuma.
E assim a juventude, em nosso peito,
retumbava uma batida detestável.

Foram cinco, seis semanas de frustradas
tentativas, todas muito de partir o comboiinho
do sentido. Pelo tropel de decibéis desnorteados
percebemos que corríamos a monte, sem
feitio nem agrado. Não era por ali. Paciência,
concluímos, cada um para seu lado: o das vozes
para os livros, o baixista para as mágoas,
o guitar para a mentira, o baterista para a morte.


Divina música: antologia de poesia sobre música (de Walkmen), org. Amadeu Baptista, Conservatório Regional de Música de Viseu, 2009.

domingo, 14 de março de 2010

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES

[INVERNO EM VILA REAL. O NEVÃO]


Inverno em Vila Real. O nevão
cobria a rua do liceu.
Uma luva de cabedal amodorrado
no tampo, o vapor do alento
liga-nos à toada indiferente.
O meu tumulto ensombra-te.

Um pombo protegido no beiral,
a cabeça na plumagem de procela.
Tu calado, eu afeito ao silêncio, delineava-se
no compêndio e numa bolsa a letra
do nosso nome, de maneira a desenhar
uma única sílaba fora de alfabeto algum.
Que bem tão mal ali se convinha, se
faltava à aula, na sediciosa ocasião
de um inaugural amor.

O foro furtivo já desagregava.
Nem eu te quereria
na luta em sobressalto do meu rumo.
Porém, sempre que falarem da neve
e o que for teu vier pela avenida
em direcção à confeitaria
algo do desaparecimento, quem sabe, te lembrará.


Um Toldo Vermelho, Relógio d'Água, Lisboa, 2010.

quarta-feira, 10 de março de 2010

VITOR SILVA TAVARES

NA MORTE DE EDUARDO GUERRA CARNEIRO


[...]
Suicídios como o do Eduardo Guerra Carneiro NÃO DEVEM ficar limitados às razões e desrazões de caso pessoal: outro que suicida voador e tal o João Rodrigues (desenhador-poeta surrealista que se atirou "da janela à rua") o Eduardo é – Van Gogh o foi para Antonin Artaud – um "suicidado da sociedade".


Telhados de Vidro, n.º 2, Averno, Lisboa, 2004.

domingo, 7 de março de 2010

MANUEL DE FREITAS

ZULMIRA, AO AMANHECER


No urinol público lia-se UTILIZAÇÃO GRATUITA.
Fiquei quase feliz (quantas coisas gratuitas
há neste mundozinho de horror?).
Mas o que desta manhã eu mais agradeço, Zulmira,
é a tua sopa, essa que tantas vezes
me salvou a vida, entre centenas de super bocks.

Não me inquietam os chulos, os assassinos
ou estes mendigos calados. Ilustríssima gente,
de uma má-raça inegável. Prefiro perder
com eles os meus dias, e falar da fome, dos joanetes
ou do preço do azeite. Não tenho tempo
para aprofundar desrazões, nem para conviver com puetas.

Sei apenas que as poucas pessoas que amei
estavam por detrás de um balcão
onde o álcool ardia, muito devagar.
Os meus pobres anjos.
Também por isso gostava de te obrigar a esta taberna,
exílio cantante de todas as minhas antigas manhãs.

Por esta mãe desolada, pelo rumor sombrio
do vinho que nunca azedou nos meus lábios,
por certas inábeis palavras que sobre os barris
faleceram e te pertenciam somente.

Mas «até logo, Zulmira», bem sabes que do amor
ou do futebol nada poderei jamais dizer
ou sentir. Entre os teus braços largos deponho
em silêncio aquela negra noite do meu mal.
Por uma sopa encorpada, sobre destroços
imperecíveis, bocados de morte partidos.


Os infernos artificiais, Frenesi, Lisboa, 2001.

quarta-feira, 3 de março de 2010

PAULO TEIXEIRA

AMPULHETA


E o tempo conheceu a sua estatuária.

O trilho visível e medido no ar
em que os segundos se derramam
– sem símbolo de pausa nem desvio de curso –
de um céu suportado por colunas.

As horas afluem inatas, articuladas,
sem instante inaugural nem fim à vista,
como se lenta florisse a flor da farinha
sem cheiro a meio desta globulária de vidro.

O tempo casou-se com o mundo nesta imagem.


Orbe, Editorial Caminho, Lisboa, 2005.