quinta-feira, 31 de maio de 2012

MANUEL DE FREITAS

VISITAÇÃO

para o Rui Caeiro

Não sei bem precisar, mas terá sido há cerca de cinco mil livros (e muito mais cigarros e cervejas, escusado dizer) que nos encontrámos pela primeira vez.

«Está aqui um senhor à tua procura», gritou um pouco incrédula a minha mãe, no fundo tão assarapantada como eu — que só me dava, na altura, com bêbedos profissionais. O senhor era o Rui, que estava ali de passagem com um amigo ribatejano, e eu, aos dezassete anos, só tinha para lhe oferecer um «branco deserto imenso» que cultivava solitariamente. Embora já então escrevesse, a quase ninguém mostrava os meus poemas. Também não o fiz, nessa tarde remota, ao meu mestre Caeiro.

O Rui foi, em rigor, o único poeta que entrou na cave da rua Francisco Lima Monteiro n.º 5, que os meus amigos carinhosamente apelidavam de «antro». E isso, convenhamos, tinha mesmo de ficar por escrito. Pois o mais fortuito dos encontros se transformou, com o passar dos anos, numa amizade singular: porque limpa, inquebrantável, sem qualquer amolgadela. Foi ainda o único poeta — passava Deus, sempre caprichoso, pela lisboeta Bijou da Calhariz — que me viu prestes a bater numa besta lírica. Cujo nome, contrariamente, prefiro não citar.


Telhados de Vidro, n.º 16, Averno, Lisboa, 2012.

domingo, 27 de maio de 2012

ABEL NEVES

FERNANDO PESSOA NO MARTINHO DA ARCADA


ele há coisa mais natural do que um poeta amar o ovo estrelado?
é o que ouço dizer
que Pessoa para além de tudo
passando sem pressa de passar na praça maior do Tejo
sentado no café com versos e odores de mar
gostava de ovo estrelado
dizia que era um sol frito
as coisas que um poeta diz


Telhados de Vidro, n.º 16, Averno, Lisboa, 2012.

domingo, 13 de maio de 2012

INÊS DIAS

BOMARZO


Lá fora
ainda temos luz,
sem esquinas,
dessa que se deixa
às vezes ficar
como a cintura da jovem
junto ao braço do velho
no mesmo banco,
condoída da nossa prisão.

Mas deste lado de mim
está a cortina da noite,
atrás da noite
a escada que sempre subi
à tua frente,
dentro da escada
um rato
a escavar, a escavar
por entre os séculos.

E dentro do rato
um coração com urgência
de anjo exausto,
todo o sangue emparedado
da mais solitária personagem
neste nosso romance
com nome de jardim.


In situ, Língua Morta, Lisboa, 2012.

domingo, 6 de maio de 2012

A. M. PIRES CABRAL

O QUE DIZ O RATO


Tenho um destino. Nasci
para roer o silêncio – e vou roê-lo
metodicamente

até que um dia se invertam os papéis
e seja o silêncio a roer-me a mim.


Resumo: a poesia em 2011 [de Cobra-d'água], selecção de Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Documenta/Fnac, Lisboa, 2012.