quinta-feira, 30 de setembro de 2010

RUI NUNES

MÉDIO ORIENTE


Explode:
as mãos traçam um som insuportável:
a história pára nesse gesto
mas recomeça um pouco mais à frente.
O que sobra de um corpo
é a silenciosa queda dos destroços.
O trigo escurece, as rêses comem a própria carne,
e os gafanhotos anunciam a manhã do ódio:
o desenho do tempo fica dia a dia mais nítido.

os vidros resguardam-no do clamor
e nos vasos de begónias floresce o néon.
Sentado à secretária, o homem risca uma palavra,
leva as mãos aos lábios,
medita,
e reescreve a morte.

como se diz este último resíduo,
estes corpos que irradiam morte,
o anónimo de uma luz insuportável?
como se diz uma palavra
meticulosamente destruída,
estes sons desavindos?
ou uma criança que não sabe correr?

a eternidade é a bebedeira dos desesperados:
viagem rápida, dia em estilhas
que acaba em três ou quatro gotas
no vidro da janela:
insectos esborrachados contra um pára-brisas.

é preciso decifrar os escombros.


Telhados de Vidro, n.º 14, Averno, Lisboa, 2010.

domingo, 26 de setembro de 2010

JOSÉ AMARO DIONÍSIO

BIOGRAFIA


O coração é uma arte difícil. Mas tudo o resto é a crédito.


Telhados de Vidro, n.º 14, Averno, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

JORGE ROQUE

CANÇÃO DA VIDA, 1


Caem-lhe as peças de xadrez do tabuleiro derrubadas por movimentos mal calculados. Ouvem-se no andar de baixo a embaterem no soalho e calarem-se num som trémulo, quase um lamento. Ele apanha-as e volta a colocá-las nos lugares de que se lembra. Sabe que erra os lugares, principalmente quando cai mais do que uma peça. Sabe também que não importa. Como não importa quem ganha ou quem perde, ele ou o outro que com a sua mão joga do outro lado. Importante é não parar de jogar. Cansar a noite, cumprir a vida, deitar-se para amanhã recomeçar.


Telhados de Vidro, n.º 14, Averno, Lisboa, 2010.

domingo, 19 de setembro de 2010

HERBERTO HELDER

[A POESIA É FEITA CONTRA TODOS]

[...]
A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só. A glória seria ajudar a morte nos outros, e não por piedade. A grandeza afere-se pelas conveniências do mal. Aquilo que se diz da beleza é uma armadilha. Pena que não pratiquem o pavor, todos. Seria o lucro do nosso emprego e um pequeno contentamento para quem está com alguma pressa em agravar.
.
E leia-se como se quiser, pois ficará sempre errado.
.
.
A Perspectiva da Morte [de Photomaton & Vox], org. Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

JORGE DE SOUSA BRAGA

O GUARDA-RIOS


É tão difícil guardar um rio
quando ele corre
dentro de nós


Balas de Pólen, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2001.

domingo, 12 de setembro de 2010

A. M. PIRES CABRAL

MELRO EM GAIOLA (VI)


E todavia,
as risadas do melro na gaiola
fazem-me rasgões por dentro
como se em vez de riso fossem pranto.

Porque eu sou como ele:
alguém me reduziu o tamanho do quintal
até o quintal ficar isto que se vê
– e eu a defendê-lo a golpes de riso.

Como o melro, tal e qual.


Telhados de Vidro, n.º 11, Averno, Lisboa, 2008.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

RENATA CORREIA BOTELHO

EL PÁJARO


é de ti, passarinho, que fala
esta música. espero-te à varanda
do meu quarto, num abismo
que se ergue do chão aos meus olhos
ainda baços. encontraste aqui,
como eu, a tua sombra, pajarillo

tú me despertaste, enseñame a vivir
e vamos juntos, por aí, numa voz só,
entoando esta cantiga com os cavalos
bravos, fingindo a vida e logrando
a morte, recolhendo à terra,
passarinho, sem nada temer,

recolhendo à terra.


Small song, Averno, Lisboa, 2010.

domingo, 5 de setembro de 2010

MANUEL DE FREITAS

SALVE REGINA

para a Inês

«Isto já não tem melhoras» – acabou
por nos dizer Zulmira, referindo-se
à sua perna atropelada, à vida,
ao filho que há três anos lhe mataram,
embora se chamasse Epifânio.

E ficou assim, completamente sozinha,
deusa rude e resignada que veio
dos campos servir vinhos e cervejas
a uma «freguesia» que foi, em tempos,
tão imensa como é agora a sua solidão.

Uma quase mansa solidão, se virmos bem,
uma tristeza sem lágrimas, uma sabedoria
que se volta a confundir com o azul forte das paredes,
com o seu nome último e inquebrantável,
a «passar o tempo» entre os muros deste reino.

Tem agora a mesma idade que Maria,
abre só para ti uma garrafa de ginja
e assiste calmamente ao fim do mundo.


A nova poesia portuguesa, Poesia Incompleta, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

LUÍS ADRIANO CARLOS

[DOER A TRANSPARÊNCIA DO SOSSEGO]


Doer a transparência do sossego:
terna agonia em que nos dissipamos,
entre os destroços de uma construção
teórica. Doer em pensamento
este sossego que na transparência
desmonta o aparelho: imagem tida,
repente breve, ou só memória já.
Vai ser difícil continuarmos vivos,
pensa, como eu, que assim será, difícil,
antes que os deuses nos prometam tudo.


Invenção do Problema, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2006.