segunda-feira, 29 de novembro de 2010

MIGUEL MARTINS

XVII


Eu quero ter um bar de estrada numa estrada pouco frequentada. Um lago atrás para mergulhar a vista, e os mantimentos de uma aldeia em extinção. Os Lusíadas mudos a um canto, e ciber-melancias sempre à mão.


Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia), Língua Morta, Lisboa, 2010.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

ARTUR DO CRUZEIRO SEIXAS

[O PARTO DE UMA PEDRA]


O parto de uma pedra
é realmente um espectáculo
para uma vida inteira.

E há ainda o sol
e a sua vergonhosa incompatibilidade
com a lua.

Mas hoje estou triste como se fosse poeta
e é à sombra do vento que me acolho
puxando para os ombros
a nudez da paisagem.

Vêm os violinos
de muito longe
ouvir a neve.


Poemas portugueses [de Eu falo em chamas], org. Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora, Porto, 2009.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

OS DIAS DE BRUEGEL


Os campos estão lavrados, mesmo sob a
neve do inverno permanecem
estendem o horizonte de terra fértil e a ave
marinha voa sobre o íris amarelo

estão armados os cavaleiros d'áustria e de
filipe segundo, rei espanhol,
massacram os inocentes, o sentido das vidas
a história de imaginada Flandres

dão o passo sobre a branca paisagem os
caçadores, desliza na água do degelo
uma barca de improviso, mas logo

desce de novo a luz do outono sobre a aldeia e o
silêncio, cor do inverno. (Acontece,
há caminhos mais longos do que
outros. O destino a que

é suposto chegarmos está desenhado à
partida. Desculpa ser tão bruto – o destino,
triunfo da morte.)


Sobre mármore, Teatro de Vila Real, 2010.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

TIAGO ARAÚJO

(SJ-06)


as formas de conhecer-te são só duas
ou três; esta é a que demora mais tempo.
a chuva parou e continuamos distraídos neste
amor de cabotagem, nunca demasiado
longe ou perto da carne e dos órgãos que uma
abóbada de ossos protege. cumprimos
a liturgia das horas, repetida sem convicção ou
eficácia, e por vezes as palavras começam
a fazer sentido, como os gestos com que
te aproximo de mim, com uma só mão
e algum sono. uma navegação lenta,
familiar e confortável, porque
essa é a melhor forma de te conhecer
os dedos e o modo como os usas
para fazer tranças às horas, como quem
tece cabelos ou desfia um rosário
sem murmúrios, apenas a técnica de rodar
terços e mistérios no fundo da mão
para entreter os pretendentes e
esperar que eu regresse das longas
viagens – dez anos de cada vez –
em que me ausento sem sair de casa.
esta tarde estive em Lisboa e trago-te maçãs
vermelhas de uma mercearia da rua dos Lusíadas,
com as quais tenciono adormecer-te (como
na história que contamos todos as noites), porque
é essa a única forma de te conhecer
os medos e interpretar os sonhos, escrever
ao teu lado, enquanto dormes, a lista
das tarefas diárias com que nos ocupamos a
matar o tempo.

Criatura, n.º 5, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2010.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A. M. PIRES CABRAL

NORDESTE


Quien sujeta la brújula ve
ocho direcciones de mundo,
ocho maneras de estar.

El octavo es el Nordeste.


En algún lugar al nordeste [Algures a nordeste, traduzido para castelhano por José Luis Puerto e Jésus Losada], Celya, Salamanca, 2010.

domingo, 7 de novembro de 2010

VÍTOR NOGUEIRA

NOITE


Os gestos mudaram, a iluminação também.
Conseguimos esconder-nos atrás de nós mesmos.
A noite, como sempre, vai servindo para esperar.
De que se vive, afinal? De que se morre?


Quem diremos nós que viva?, Averno, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

MANUEL DE FREITAS

MONTE

para Glória de Freitas

No limite da raiva e da impaciência,
perdíamos autocarros atrás de autocarros
(o que já vai sendo costume, nos meus poemas).
A tia entrou naquele em que não entrámos.
Só nos voltaríamos a encontrar no Funchal,
pouco antes do regresso a casa.

Em vez da raiva, o sorriso da tia virou-se
para mim, dizendo: «isto ainda vai dar escrita,
Manuel António». Não se enganava, enquanto
atrás de nós se apagavam ou acendiam as luzes do Monte
e os esqueletos de vaca pediam a voracidade comum.

Mas prefiro lembrar a dança inútil
de um acordeão, a boneca de farinha
comprada pelo meu pai no Caminho das Babosas,
essas impronunciáveis coisas que da morte apenas
nos tornam para sempre cúmplices, vagas testemunhas,

embora te ficasse bem o colar de funcho.


Caminho das Babosas [de Boa Morte], edição do Autor, fora do mercado, Lisboa, 2010.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

LUÍS FILIPE PARRADO

AS UNHAS


Sim, as unhas. Único órgão humano
que merece ser cantado no poema,
ele mesmo uma espécie de unha, laminar.
Garras ou pétalas,
precisam de corte e medida certa,
insistindo, depois do fim
da carne (que guarneceram toda uma vida),
em crescer para nada.
Últimas, mínimas transparências
fibrosas e amareladas
— pelos muitos cigarros. E
ainda se riem da morte,
já no caixão, sinal
de força sob a irremediável fraqueza humana.
Espigões quebradiços
com que ferimos o chumbo,
esse coração que Conrad disse um dia ser de trevas.


Criatura, n.º 5, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2010.