domingo, 28 de setembro de 2014

JOÃO ALMEIDA

CARTA DE EL PASO


Perdeste por pura estupidez
As palavras entravam-te na cabeça como nevoeiro
E por lá ficavam em nevoeiro
E também por falta de espinha
Pra não dizer outra coisa.

Gostas de vir com o Stonebreaker
Do miúdo absorto como um pesadelo
À luz do dia
Martelando pedra a pedra
Sem a possibilidade de fumar um cigarro na descida.

Devias estar mais atento ao louco
Que não vias atrás de ti
De navalha aberta. Agora não sei que te diga.

Respondes que estás bem embora tenhas dito a verdade
No que diz respeito à pornografia
Ou que a poesia já te deu melhores dias.

Ouve, esquece o puto a partir pedras
Ou então mete-te na droga.

Quanto à questão dos versos
Lembra-te da rapariga silvestre
E da outra que chupava kalipos inocente
Disposta a muito.

Digo isto porque estás a ficar muito pálido.
Em El Paso se quiseres
Podes abancar em minha casa, comes do que houver.
Fode-se e morre-se bastante por cá.


Telhados de Vidro, n.º 19, Averno, Lisboa, 2014.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

ARMANDO SILVA CARVALHO

[PELA CORDA FRÁGIL]


Pela corda frágil
das palavras
as mãos impacientes destes versos
descem
com um cuidado de dominicano
ao entrar na missa.
O domingo da vida veio ao meu encontro.
E eu deito-me nas pedras,
obediente
ao fogo.
Um cão. Um cão de deus.
E que não larga
nunca
as calças de Caeiro.


Verbo: Deus como interrogação na poesia portuguesa (org. de José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia), Assírio & Alvim, Lisboa, 2014.

sábado, 20 de setembro de 2014

INÊS LOURENÇO

ESCRITA CRIATIVA


Havia ainda os pequenos
marçanos de bata de riscado, que dormiam
nas caves das mercearias entre os fardos de
bacalhau e polvo seco. Cruzavam-se na rua
com as aprendizas de modista que começavam
por apanhar alfinetes do chão no atelier, entregar figurinos
às freguesas, encerar os soalhos da mestra e só depois
iniciar bainhas e alinhavos.

Os mestres da escrita criativa
ensinam aos já adultos marçanos
e às prováveis costureiras
a talhar sublimes arroubos ou memórias
porque é bonito ser artista, conhecer as surpresas
da sintaxe, o encanto da melancolia ou o poder, dizem eles, do verbo.

Entretanto esses mestres
da palavra
transmitem os seus belos ofícios, sem a metonímia
de fardos de bacalhau ou polvo seco. E nem
sequer apanharam alfinetes em Ítaca ou
enceraram o soalho do Mestre Caeiro.


Telhados de Vidro, n.º 19, Averno, Lisboa, 2014.

sábado, 6 de setembro de 2014

ADÍLIA LOPES

FRASES


A política é uma forma de distribuir dinheiro.

Ler não é agir.

A inteligente gente é zombeteira.

Nunca me arrependi de ter desistido.

Não se mandam cartas de amor registadas.


Telhados de Vidro, n.º 19, Averno, Lisboa, 2014.