quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

ANA PAULA INÁCIO

[OS MILAGRES ACONTECEM]


Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.


Vago Pressentimento Azul por Cima, Ilhas, Porto, 2000.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

PEDRO JORDÃO

I'M A GHOST STORY


eu costumava morrer por acidente. entendam:
eu não sabia o que eram corpos desabotoados.
eu tinha sentimentos exactos e caía em poços
que não vinham nos meus mapas de algibeira.
agora caminho acompanhado por quem partiu
e abandono-me metodicamente a cada desastre.


Criatura, n.º 2, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2008.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

DIOGO VAZ PINTO

PELOS PIORES MOTIVOS


Uma última canção antes que deixe a lua
desistir de nós. Depois será tarde, mesmo
que insistas contra o tempo na repetição
do mesmo beijo, outro golpe fraco e triste,
sinal apenas de que nunca tivemos jeito
para mentir um ao outro. De um certo modo
(que não resultou melhor a nosso favor)
fomos sempre fiéis e até nos quisemos bem.

Esta noite, se eu prefiro assobiar, és tu
quem dança. Seguimos numa despedida
que não sendo a primeira nem a última
vem sendo a constante, e por ruas
que não se lembrarão de nós, retiramo-nos
desvirtuando a melodia, no conforto
estranho de estarmos juntos, mas dilacerados
pela presença de uma terceira sombra.


Criatura, n.º 2, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2008.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

DAVID TELES PEREIRA

CÉLINE

para a Julie

A vida tem destes acasos literários:
um comboio, dois livros e a pior
das razões para nos apaixonarmos.
Tenho vinte e dois anos e o equivalente
em retratos teus – periféricos ou não –
catalogados de acordo com as horas psicologicamente
intermináveis do teu sorriso.

O nosso amor é como o lado vazio duma ampulheta,
ou seja, inverso ao próprio tempo que não marca
o surgir inesperado daquelas noites em que tudo acontece
numa peça de teatro à qual nunca comparecemos.

As tuas mãos são um jardim demasiado inconstante
para fazer fila e esperar a morte. Tens seis letras no nome
e antes que amanheça saberei em que lugar do meu corpo
cada uma delas cabe.


Criatura, n.º 2, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2008.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

VÍTOR NOGUEIRA

SOBRESSALTO


Um escape livre corta a Rua Alexandre Herculano,
fende, talvez sem remedeio, a escrita de um soneto.
O Senhor Gouveia não suporta marialvas
com fumaças de Apolos e farfalhices de Mercúrios.

Hoje, que os tempos mudaram, os D. Juans
não usam fina lâmina de Toledo, nem vão
da dama preferida, a lança em riste, disputar
a soberania da beleza, em ginetes de fina raça.

Hoje, a espada é, quando muito, um telemóvel;
os corcéis, motocicletas barulhentas; e o chapéu
emplumado, um capacete (que às vezes, apeados,
mantêm na cabeça, como um quico de comédia).

Depois, claro, os romances de amor são menos vivos,
menos cintilantes de ardores apaixonados.



Senhor Gouveia, Averno, Lisboa, 2006.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

LUÍS QUINTAIS

A MÚSICA


Depressa
as gargantas
foram cortadas.

Agora, em ti, habitando-te:
música desse sangue
tão espesso,

tão mais espesso
que a água.


Mais Espesso que a Água, Cotovia, Lisboa, 2008.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

CARLOS BESSA

SOMBRAS


Em agosto, à sombra de uma esplanada
Da Batalha, no Porto, a beber cerveja
Água tónica, ruidosos e contentes, todos.
Ele com um livro de Gil de Biedma.
Folheia-o enquanto um aventureiro da guitarra
Dedilha a sobrevivência dessa vagabundagem
Que já foi literatura e cinema.
Lembra-se, então, de um homem que vendia poemas
Para comprar laranjas ou de um outro que
Os dava a troco de um sorriso.
As arestas da cidade ferem-lhe o pensamento.
Tem de tudo, angústia e humor
Arrumado nas estantes e sabe que
Quanto mais se vive com o tempo
Mais se morre com ele. É difícil
Permanecer em silêncio, continuar
No fingimento dessa felicidade.
As gargalhadas param. Talvez um poeta
Não saiba senão falar do que se esqueceu.
Pst pst, a conta, por favor.


Em Trânsito, & etc, Lisboa, 2003.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

A. M. PIRES CABRAL

COMPUTADOR NO LIXO


Eis um computador
no lixo. E todavia
o crânio de lata teve memória dentro
– gigabytes dela! –,
fez as quatro operações,
aceitou versos
no seu imaculado
vazio virtual.

Agora já não soma
nem subtrai,
nem geme poemas, nem sublinha
erros de ortografia.
Os pingos de solda, precários
neurónios de metal,
perderam a memória.

Já que te antecipaste,
companheiro,
diz-me como é não funcionar.

E se a ferrugem dói.


Como se Bosch Tivesse Enlouquecido, João Azevedo Editor, Mirandela, 2003.