[O TOLDO ILUMINA O QUE OUTRORA FOI CASA RURAL]
o toldo ilumina o que outrora foi casa rural
e de onde chega ainda o cheiro denso
a erva recém-cortada há cinquenta anos
e a leite fresco de recente ordenha.
a cadeira de plástico está molhada
mas sento-me, ainda assim. não muito longe
os homens invadiram o terreiro
e sob a copa de um cedro centenário
jogam o fito contando pelos dedos
concentrando nas mãos o dom do sobressalto
com que a vida que têm os derruba.
é gente de idade, não são velhos.
vistos assim de perto parecem mais crianças
que acabam de chegar vindas da escola
do que vultos vergados pelo peso dos trabalhos
tão duros como os que já passaram.
olhando-os penso em ti, comovo-me em segredo,
pergunto-te a distância a que te encontras
e quais os teus desígnios trazendo-me para aqui,
sabendo-se que preferia estar com os meus filhos
na casa que perdi.
é indiferente culpar-te ou não culpar-te.
é indiferente pertencer a esta cisão
que me determina a palavra e o silêncio,
o mal de ter nascido, a dor de ir morrer.
perdida a juventude a hora do abate
apenas configura o desencanto
que só pode transcender quem me transcende
pela pouca misericórdia disto tudo.
levanto-me, dou dois passos,
aproximo-me do balcão por um copo de água
e vejo na tv imagens da barbárie.
com um fio de sangue sulcando-lhe a cabeça
jaz um homem sem peito entre as ruínas
e há uma anciã que em silêncio grita.
por um segundo vejo tudo turvo
e quase compreendo. de quanto recebi,
o carro resplandecente é a mais-valia.
Os Selos da Lituânia, & etc, Lisboa, 2009.