quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

RUI PIRES CABRAL

UMA CASA NA PADARIA

para a Daniela Gomes

Era uma casa qualquer onde a linguagem se sentava
como uma rainha. Não havia terra que ficasse
perto, o próprio ar já nos mordia os braços
e havia um rato morto na cozinha.

Pintávamos criaturas incompletas no vermelho inteiro
das bisnagas, por vezes o nosso retrato às avessas
com sombras no coração. Pelos telhados
os gatos vinham visitar-nos com cautela, as plantas
duravam pouco nas unhas de cada mês.

Havia tempo de sobra e um lance de degraus
que subia vacilante até onde fosse preciso.
E nós lá em cima cheios de graça,
com frio nas mãos e tinta nas mangas.


A super-realidade (2.ª edição, revista), Língua Morta, Lisboa, 2011.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

DAVID TELES PEREIRA

(EIN ZECHER IM MEER)

Seinen Kaisern und Helden
das geheime Deutschland

Piotr Michnik, o historiador, enforcou-se há duas semanas.
Quando finalmente o descobriram, oito dias depois,
era como se o branco encolher dos olhos rasgasse o coração do céu.
Formigas sobre o apodrecido revestimento do corpo,
cansado deste mundo graúdo,
saboreavam o seu rosto com melhor apetite.

Para quem morre só uma vez, estamos todos demasiado mortos.
Tome-se como exemplo o doutor Michnik
e a sua imensa biblioteca onde se enforcou.
Agora, para sempre, os dois corpos de um rei destroçado
repousam sobre o seu império de crepúsculos
e uma torrente de mar rude, incessante,
colheu-nos em murmúrios os ossos da história.

Má sorte a minha ou talvez não. Agora que penso
nisto à distância de uma chávena de café
a sua refutação parece-me óbvia:
Jovem, não vás à pesca com esse isco melancólico,
a morte raramente chega como chuva amável do céu
ao lugar em que cai
e nunca são as tuas ideias o que os insectos querem,
é o teu cadáver.


Criatura, n.º 6, Núcleo Autónomo Calíope da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2011.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

ANTÓNIO GREGÓRIO

CARPINTARIA


Sobretudo tive pena de quem lhe fez
o caixão porque a morte creio é cheia de horas
mortas e o meu avô carpinteiro igual a
ele irá perscrutar cada pormenor da
obra do seu caríssimo colega. Já
o vejo desdenhoso abanando a cabeça
descarnada aos primeiros sinais de cedência
prematura da madeira à pressão da terra.



Criatura, n.º 6, Núcleo Autónomo Calíope da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2011.

sábado, 10 de dezembro de 2011

A. M. PIRES CABRAL

PERGUNTAS


Alguém me permitiu que chegasse a esta idade
fazendo perguntas. Boa alma, essa
que leu em mim o aguilhão das dúvidas
e o achou legítimo e me permitiu que às vezes
fizesse umas perguntas de trazer por casa.

As outras perguntas, as menos correntes,
aquelas a cujo cofre só sábios têm acesso
(e para as quais aliás nunca encontram resposta,
tal qual eu para as minhas – estou vingado),
essas foram-me escondidas
como de uma criança o frasco da compota.

Ainda assim, impostos dessa forma
limites aos meus passos inquietos,
agradeço o benefício. Porque enfim

podia ter nascido sem a urgência
de inquirir coisa nenhuma.
Podia dar-me por satisfeito assim,
aninhado numa rábula qualquer.
Ronronar como um gato que o dono afaga
maquinal atrás da orelha enquanto lê.

Com acesso garantido a um lugar de balcão
com vista para a bem-aventurança.


Cobra-d'água, Cotovia, Lisboa, 2011.

domingo, 27 de novembro de 2011

JOSÉ MIGUEL SILVA

CORRENTE ALTERNA


Não sei o que é melhor neste jardim
amuralhado, se o aperto de viver
entre repouso e coerência, ou a injúria
de vogar entre palavras e mais nada,
dando visos de ilusão a criaturas

condenadas: a mesa posta à sombra
da figueira, a certezinha das roseiras
e das rãs, que não se cansam de louvar
a imolada providência dos insectos,
sem saberem da defunta Primavera.

O sol desaparece entre eucaliptos
e acácias infestantes. No laguinho
a noite tomba sobre folhas de nenúfar
e os peixes já recolhem para o fundo
o seu modelo de verdades sem mistura.

Está na hora de fechar este caderno
e acender o buzinão noticioso,
pois o espírito alimenta-se em atrito,
e a arte é um trajecto de nenúfar,
intervalo colorido, entre a luz e o lodo.


Serém, 24 de Março, Averno, Lisboa, 2011.

sábado, 19 de novembro de 2011

ANTÓNIO BARAHONA

CORRESPONDÊNCIA COM ALPHONSE DE CHATEAUBRIANT


Fugir, fugir o mais depressa possível
para o cume da montanha,
onde a neve não derrete
e, solitário, respirar neve,
tomar banho em neve,
esfregar-me com neve,
rolar na neve,
comer neve,
fazer-me, a mim próprio, de neve,
até sentir bater,
em redor de mim
e dentro de mim,
um coração de fogo.


Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea, Averno, Lisboa, 2011.

sábado, 12 de novembro de 2011

CARLOS POÇAS FALCÃO

"ICH HABE GENUG"


1.
O balouçar
da roupa sereníssima
no bairro das traseiras
recorda-me o engano
que ilumina em volta o mundo.
Não saltes tão de força, coração, mas também tu
oscila sereníssimo no tempo que ainda tens
para não desesperar

2.
E estava-se tão bem

Mas depois abriu
depois fugiu
desapareceu

Depois da tua morte
continua a claridade
a luz faz doer os olhos

E não podendo já
falar ao teu ouvido
nenhum segredo escuto
para dizer ao mundo inteiro

3.
Agora outra vez a caminhar
atraso de propósito o bater dos vários ritmos

Não estou contra
não vou contra
apenas subo um pouco
e desacelero

Assim vou desdobrando
um fio de oração sobre a cidade
Depois dos triunfos
e das pequenas mortes
é só pela humildade (a terra da alegria)
que posso regressar


Público, Lisboa, 12 de Novembro de 2011.

domingo, 6 de novembro de 2011

INÊS DIAS

LAPINHA


Para a Lorena


Às 21h25 a ilha fecha,
o último pássaro metálico
deixando para trás os portões
encerrados das lagoas.
É um tempo de aranhas
esquecidas das teias, aves
suspensas no voo, amigos
que invocam em silêncio as estações
e recordam ainda a Criação,
camada por camada.

Sobre os homens desce então
uma redoma de nuvens, que a estrela
única vem selar. Cada um risca
as fronteiras do sonho com sebes
de hortênsias ou muros de basalto,
esperando depois que as três
voltas do milhafre não o surpreendam
entre as espigas altas do mundo.

E o medo torna-se subitamente
navegável, mar de minúsculas
e carnudas conchas estendido
a nossos pés, para que possamos
sempre caminhar sobre
as águas.


Público, Lisboa, 22 de Outubro de 2011.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

JORGE GOMES MIRANDA

ETERNAS PERGUNTAS


Não mais as minhas mãos
penteando os teus cabelos.

Não mais o silencioso som de chegares
a cadeira para a mesa.

Não mais o gesto de colocar-te o guardanapo
de papel ao pescoço.

Não mais o cortar o peixe em pedacinhos,
retirar as espinhas.

Não mais as eternas perguntas entre
mãe e filho.


Requiem, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.

domingo, 30 de outubro de 2011

E. M. DE MELO E CASTRO

CRÍPTICA


Para quem não sabe ler
Toda a escrita é críptica

O alfabeto cirílico é críptico para mim

Os ideogramas chineses ou japoneses
São igualmente crípticos (para mim)

Para os economistas
A poesia é críptica

Para os imbecis
A inteligência é críptica

Para os cegos de nascença
A cor é críptica

Para todos os homens
A sua vida é críptica

Para os vivos
A morte é críptica

Para os mortos
O que será a morte?


No limite das coisas, Campo das Letras, Porto, 2003.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

MIGUEL MARTINS

4 – DA LITERATURA



Gosto de pessoas que não escondem as suas fragilidades. Não precisam de usá-las na lapela do casaco, é claro, mas que não as escondam se calharem em conversa. Fobias, egoísmos, incompetências, doenças psiquiátricas, mendicidades, etc., são o melhor que temos para nos dar. Porque o mais é falso ou não é particularmente nosso. O Pierce Brosnan e a Tyra Banks não existem; a nouvelle cuisine é uma cagada; o Fernando Mendes e o peixe frito são mesmo muito bons. Sou muito melhor escritor do que o Hemingway. Quase toda a gente é muito melhor escritor do que o Hemingway. Não percam tempo com o Hemingway se tiverem uma bola, alguns amigos e um jardim onde jogarem. Não percam uma oportunidade de suar. O suor é sempre bom, a menos que se sue por dinheiro. Fumem. Fumem muito. Os dentes castanhos são melhores do que os brancos. Melhor do que os dentes castanhos só não ter dentes nenhuns mas ter quem nos corte maçãs e queijo da ilha aos bocados pequeninos. Que se foda o Hemingway.


Lérias, Averno, Lisboa, 2011.

domingo, 16 de outubro de 2011

LUIS MANUEL GASPAR

[«SOUBE ENCONTRAR NO AREÃO A FLOR EM TRANSE.»]


«Soube encontrar no areão a flor em transe.»
e apontaste o ventre aberto da ondina:
carnagem crua te enquadrava, laminosa,
a face fria com a nuvem de falenas,

um relâmpago no estômago, e essa ombreira
pálida à mercê da lamparina; ovíparos
recados sob estacas, e tripas, e folhas
e escamas também. Engastado à tua voz,

«Toca-me os olhos com as pontas, sem a sombra
que de repente se enrolou entre os meus passos.
Vê, sob os círculos do peito, o peixe negro:
morde, puxa, rasga a pele do braço avesso»

E há tempo à justa pra empalhar outra corola,
o laço escuro a ecoar a trovoada


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

domingo, 9 de outubro de 2011

RENATA CORREIA BOTELHO

PALO SANTO


fendiam o castelo e o nosso palco, em madeira,
gotas temíveis, prontas a molhar de incerteza
a mala gasta do palhaço, o fato de trapezista
que se equilibrava a custo na solidão do cabide.

fizemos uma roda e uma chama lenta, como mandam
os mais fundos preceitos da magia, calámos
baixinho todas as vozes, deixámos aos pássaros
e ao palo santo a decisão suprema daquela noite.

nada sabia eu, até ali, da alma do fogo abrindo
caminho entre as intimações da chuva. e o céu
vergou-se, num sopro, a um rasgo de sol, que trago
nestes olhos entretanto regressados à borrasca.


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/ Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

MARIANA PINTO DOS SANTOS

4.




Escreveste há tempos numa carta para ninguém «pensei que sempre estarias aí». Agora sabes que não há presenças perenes nem ausências definitivas. Basta folhear as páginas dos livros para escutar as conversas entre poetas, um diálogo tímido que se trava e acelera no excesso que não cabe em lado nenhum. Oferecem-se uns aos outros as mais brutais ou gentis palavras. Palavras velhas como o mundo, tantas vezes ditas e escritas que dele se separaram há muito, mas às vezes voltam para o saudar. Perdem-se, encontram-se e perdem-se e encontram-se. E assim por diante.


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/ Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

sábado, 1 de outubro de 2011

RUI PIRES CABRAL

O CABO DOS DIAMANTES VISTO DE POINT-À-PIZEAU


para o Luis Manuel Gaspar


A água-forte com jangadas
surge aqui reproduzida
por gentileza dos Irmãos
Maggs, de Londres:
....................as cores
já desbotaram e há pontos
de acidez na margem esquerda –
mas como lhes agradeço
a gentileza!
..........Os inimagináveis
Irmãos Maggs, de Londres:
quem eram, de que morreram
(seriam mais que dois)?
....................O tema
tem a urgência de um apelo
à evasão – é como sair à noite
num país desconhecido,
....................tanto mais
que as circunstâncias, nos passeios
junto ao rio, atiçam o tédio
nativo sob o chuvisco
de Março
..........e nada se compara
em mistério e sedução
ao Cabo dos Diamantes
visto de Point-à-Pizeau.


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

INÊS DIAS

PEQUENOS CRIMES ENTRE AMIGOS


Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
o apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.

Podes até queimá-lo –
com cuidado, por favor –
quando estiver mais frio;
ou enterrares os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.
Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

ROSA ALICE BRANCO

AS VESPAS DE PALERMO


A virgem sorri-me com boca de mosaico,
os meus olhos mergulham nos arabescos do chão,
geometria do sol descendo as ruas de Palermo.
Insectos aceleram bzz bzz até nas passadeiras
e Cristo impávido na igreja em frente.
Mas Cristo não atravessa as ruas:
está um pouco acima da cruz, um pouco antes.
Os anjos abandonam a escuridão do templo.
As vespas parecem pirilampos
e bzz bzz são as asas dos anjos
conversando sobre os turistas do dia.
O bzz bzz das vespas cá em baixo é de encontros
na noite de Palermo. Assentos tão etéreos
com um copo na mão, a outra na cintura
e nos punhos das vespas, vespas, vespas
atordoando o riso, o beijo passageiro.
E já os anjos estão a postos na sua nudez redonda
enquanto as vespas dormem um sono de alcatrão.
A ceia prepara-se. Cristo não nega o seu lugar à mesa.
Entre um bzz bzz e outro, olho-te no b barroco ou bizantino
e não aceito a tua morte, tu que atravessas acima das vespas,
vespas, vespas, acima do Etna que sobe ao céu
enquanto dentro se cozinham os infernos: a tua ceia,
os restos que deixaste para nós no microondas.


Gado do Senhor, & etc, Lisboa, 2011.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

VASCO GRAÇA MOURA

ELEGIA BREVE À POESIA


fugitivo passar pela retina,
no virar de uma esquina ou de um silêncio,
a tua ausência é este ensombramento,

porém que a despedida seja breve
e que voltes com um relâmpago, um
desvendar-se do mundo entrecortando

dobras desamparadas do real.
e eu pergunto: que vozes do crepúsculo
se apagavam então? talvez o vento

agitasse tristezas na folhagem,
e esse fosse o frémito dos seus
melancólicos sinais rumorejando,

ou talvez fosse a cama de hospital
e o branco desolado das paredes
e a mudez de estranhos aparelhos,

ou talvez fosse o próprio esquecimento
de que irias voltar, ou resvalar
numa lenta passagem de tercetos.


Relâmpago, n.º 27, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2010.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A. M. PIRES CABRAL

RECADO AOS CORVOS


Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Deixai só a incombustível
memória das labaredas.


Aqui e agora assumir o Nordeste [de Como se Bosch tivesse enlouquecido], org. Isabel Alves e Hercília Agarez, Âncora Editora, Lisboa, 2011.

domingo, 11 de setembro de 2011

JORGE DE SOUSA BRAGA

SERMÃO DA MONTANHA


1.
Cho Oyo
Dhaulagiri
Evereste
Gasherbrum II
Gasherbrum I
Lhotse
Kangchenjunga
Sishma Pangma
K 2
Makalu
Broad Peak
Manaslu
Nanga Parbat
Annapurna


2.
Quando chegares ao cimo da montanha
continua a subir


Público, Lisboa, 10 de Setembro de 2011.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

FREDERICO LOURENÇO

ELEGIA


1.


Tempo de dança num vago compasso de bela toada
fecha solene a última festa do longo inverno.
Chove de novo na húmida noite gelada de março;
nada faria prever o perfume da música nova.

Vejo agora teu rosto no espelho da sala dourada;
luzem teus olhos ao brilho das velas nos lustres acesos,
quando de novo a orquestra entoa a música nova,
sempre que soa no brilho da sala a triste gavote.

Música minha alheia não soa às árvores altas:
ramos e folhas ondulam à chuva na escura montanha,
cantam por mim o que vejo ao ver-te no límpido espelho,
hoje que mais do que nunca rebrilham teus olhos brilhantes.

Pena seria portanto perdermos a última dança;
ambos sabemos que vêm vazios compassos de espera,
logo que raie daqui a minutos a pálida aurora,
ela que traz como sempre o ocaso dos nossos amores.

Relâmpago, n.º 27, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2010.

domingo, 4 de setembro de 2011

MANUEL DE FREITAS

STABAT MATER


Benilde, ao balcão, reza de pé
a novena do Menino Jesus
de Praga. Alguém, que nunca
mais vi, tinha a mesma devoção
– e um mapa de heroína
a servir-lhe de braços.

Custa-me interromper a
novena para pedir, claro,
mais uma cerveja.
Tão diferentes modos de rezar,
debaixo do relógio que há vários anos
nos diz que ainda não são quatro.

Prevêem, na rádio, uma descida
da temperatura. É tudo o que
me importa saber.
Enquanto Benilde, ao balcão,
continua a rezar ao Menino Deus.

Fez-se silêncio. Tem
uma garrafa vazia ao lado.
Acendo um cigarro
em memória de Pergolesi
e escrevo, sem querer,
o primeiro poema do ano.


Juxta Crucem tecum stare, Alexandria, Lisboa, 2004.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

NUNO FÉLIX DA COSTA

A FADIGA DA INEVIDÊNCIA


Cansa-me escrever um poema e bem podia estar
a fazer outra coisa mais muscular ou libidinosa
mas uma parte da alma anseia por coisas indefinidas
quer o absoluto – medi-lo com gigantescos

números – Estes contêm o anulamento entre as propriedades
mais activas – Escrever um poema com músculos e libido
ou juntar estrelas avulsas desenhando as constelações
no firmamento são actividades da vontade

facultativas – mas escrever um poema sem estrelas
nem sonho nem libido nem a energia heróica
da sobrevivência é apenas escrever para tentar

que o poema seja escrito e contenha algo do silêncio
ou do que sobeja da frustração do absoluto se escapar
e deixar-nos a sua quase-evidência


Catálogo de soluções, Cortex Frontal, Lisboa, 2010.

domingo, 28 de agosto de 2011

MANUEL ANTÓNIO PINA

M., A ÚLTIMA PALAVRA


Entre restos de vida passada
refugiava-se o coração de cada um de nós no seu covil,
uma gota de sangue, pequeno vitral de reflexos coloridos,
na orelha de M., a pistola no chão perto da mão, ainda quente a pistola.

O que quer que tivesse acontecido
fora em sítios inacessíveis às notícias dos jornais
e aos flashes das máquinas fotográficas
voando agora como aves cegas à sua volta.

Um grande mutismo cobrira tudo
gelando os nossos passos e o que disséssemos
ainda antes de pronunciado;
percebia-se, de quem sempre quis ter a última palavra.

Não se percebia era a falta de uma explicação ou de um sinal
(ao menos um sinal justificar-se-ia dadas as circunstâncias),
apenas um botão do casaco mal abotoado,
provavelmente sugerindo alguma impaciência.


Público, Lisboa, 9 de Abril de 2011.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

GONÇALO M. TAVARES

RESULTADOS E INSTRUMENTOS



De um outro ponto de vista: utilizamos sempre uma régua para medir rectas e um transferidor para medir ângulos.

Experimenta trocar: a régua para medir ângulos e o transferidor para medir rectas.

Chegarás a resultados diferentes. Serão resultados falsos?

Eu não diria isso. Seria mais cauteloso. Diria que são resultados diferentes.


Breves notas sobre ciência, Relógio d'Água, Lisboa, 2006.

domingo, 21 de agosto de 2011

NUNO MOURA

[A ANITA]




A anita aprendeu a montar numa semana e depois foi a um concurso hípico e ganhou, a anita foi anita mamã e tomou conta do pantufa e do irmão pequenino e fez comida e lavou tudo e disse adeus aos pais da janela, a anita foi à quinta e mungiu a vaca, a anita foi ao supermercado pela 1.ª vez e comprou tudo para casa, a anita gosta de pizza e de crianças, a anita fazia tudo rápido e bem, a anita está pronta.


Calendário das dificuldades diárias, & etc, Lisboa, 2002.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

ALBERTO PIMENTA

[EU NÃO FAÇO SENÃO]


eu não faço senão
aquilo que é permitido
e está consagrado
na legislação fundamental da guerra
ou seja retaliar
pois se eu não os pusesse a mexer
mesmo sem pernas
enquanto trauteava
as velhas canções dos camaradas mortos
então eram eles que me fariam
o mesmo a mim
e eu não aprecio marchas fúnebres
nem bem garganteadas
por algum coro de qualidade
como o dos meninos órfãos de Viena
ou é Viana
para o caso
isso agora já nem altera nada


[...]

Reality show ou a alegoria das cavernas, Mia Soave, Lisboa, 2011.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

HERBERTO HELDER

[A ACERBA, FUNDA LÍNGUA PORTUGUESA]


a acerba, funda língua portuguesa,
língua-mãe, puta de língua, que fazer dela?
escorchá-la viva, a cabra!
transá-la?
nenhum autor, nunca mais, nada,
se a mão térmica, se a técnica dessa mão,
que violência, que mansuetude!
que é que se apura da língua múltipla:
paixão verbal do mundo, ritmo, sentido?
que se foda a língua, esta ou outra,
porque o errado é sempre o certo disso



Poemas portugueses [de A faca não corta o fogo], org. Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora, Porto, 2009.

sábado, 13 de agosto de 2011

MANUEL VAZ DE CARVALHO

1921-2011


domingo, 7 de agosto de 2011

GOLGONA ANGHEL

[ONTEM, EM CASA DE MADAME POMPIDOU]


Ontem, em casa de Madame Pompidou,
quando passei, levando para a ceia
sardinhas e bohémias,
estava sentado, conversando contigo,
por debaixo de um molho de velas cor-de-laranja,
um senhor ruivo, de testa alta,
que me seduziu de imediato,
talvez por lhe pressentir,
apesar de tão enterrado no cadeirão do Ikea,
um raro charme
ao mover-se com o plúmbeo peso das estátuas.

Quem era? Suponho que nos acaba de chegar
do fundo dos lagos da Noruega,
porque não recordo tê-lo ainda avistado na esquina dos
estudantes Erasmus, no Bairro Alto.
Porque é que não pedi uma breve introdução ao tema?
Nem sei. Talvez o requinte em retardar,
que fazia com que o marquês de La Fayette,
dirigindo-se para a flor do seu desejo,
tomasse séculos a chegar à hora H.
Sabe o que dava tanta pica à hora H,
nos tempos do rei Artur? Não sabe... Pois,
resultados de não lerem
Geoffroy de Monmouth (séc. XIII).

O facto é que depois desses momentos de contemplação
intermitente
voltei à perfeição da minha sardinha.
Na pátria de Alexandre Herculano
e no idioma de Gonçalo Dias,
misturava desajeitadamente
as rudes entranhas do peixe
com os finos olhares do senhor
como quem se atreve a misturar
foie gras com Brigitte Bardot.
Podia ter dito alguma coisa.
Podia, enfim, ter escrito um soneto.
Mas não foram estes floreados rimados
que mais prejudicaram o Dante aos olhos de Beatriz?
Não dizia a própria Laura que Petrarca podia ter tido acesso
às suas graças se não falasse demais?
Sem dúvida, tudo isto não está escrito
na obra de Petrarca,
mas o Dom Quixote insiste em confirmar a história.

Tudo tende à efabulação no nosso país
e é com estes elementos alegres
que nós procuramos,
se não restaurar o império de África,
ao menos celebrar os santos populares.


Vim porque me pagavam, Mariposa Azual, Lisboa, 2011.

domingo, 31 de julho de 2011

FERNANDO GUIMARÃES

VENTO


Estamos ainda longe. Quase nada se pode encontrar. Talvez
nos tenham prometido qualquer coisa, mas não o sabemos. À volta
ficam algumas casas abandonadas, estes arbustos, um pouco de areia
espalhada para que os nossos passos tenham apenas um destino
que se desconhece. Vinha o silêncio ao nosso encontro e o que existe
principia a ganhar uma fragilidade que se torna maior. Tudo
há-de ser tão leve agora para nós como um reflexo que chega
dessa ausência. Caminharemos um pouco mais. De novo
procuramos uma recordação, a passagem do vento, o seu olhar.


As raízes diferentes, Relógio d’Água, Lisboa, 2011.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

PAULO DA COSTA DOMINGOS

[DEPOIS HÁ UNS TIPOS SIMPÁTICOS]


Depois há uns tipos simpáticos
que se põem assim como que de lado,
hieroglificamente a assistir
ao espectáculo do espectáculo

dos sacrifícios, e bolsam com a bolsa
cheia de conjecturas e trans-
versalidades para a benemerência
do raquítico pensamento nacional.


Averbamento, & etc, Lisboa, 2011.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

RUI CAEIRO

[O NOSSO AMOR NÃO É COISA QUE SE APRESENTE]


O nosso amor não é coisa que se apresente
a uma sociedade como esta cujas exigências
stop que é do nosso amor que se trata
o nosso amor cheira a folhas podres de Outono
e quanto a reverdecer vou ali e já venho
o nosso amor está de rastos e como há-de ir
o nosso amor coelho esfolado o nosso amor
disco partido o nosso amor rato morto o nosso
amor ovo cozido ovo estrelado porque isso tanto faz
o nosso amor osso esburgado o nosso amor
brinquedo que um menino esventrou e não sabe
agora como é que vai poder consertar
o nosso amor chá de tília choque
anafilático paragem cardíaca
mas nosso amor apesar de ou nosso amor
tudo e mais alguma coisa o nosso amor
cinco sentidos viste-o ouviste-o tocaste-o
cheiraste-o degustaste-o o nosso amor
seja ou não seja e esteja ou não esteja
ele é para já e largamente quanto basta


O quarto azul e outros poemas, Letra Livre, Lisboa, 2011.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

JORGE FALLORCA

[ARRUMO OS LIVROS]



Arrumo os livros; desfaço o saco e penduro a roupa nas costas das cadeiras. Um roupeiro é muito tempo.


Nem sempre a lápis, Tea For One, Lisboa, 2011.

domingo, 17 de julho de 2011

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

CRÓNICA


Uma gripe que se arrasta,
um jantar que ficou azedo,
uma lembrança por enganosa,
um empenho que não vale o que custa.
Para outra altura fica o resumo
dos milagres, o relato dos prodígios,
a prova derradeira da falência dos humores.

Agora, mais do que antes, os artistas
têm pressa e o demiurgo acordou;
o espírito afundou-se nas águas.
Amanhã quem acordar cedo terá
mais tempo para se arrepender.


Telhados de Vidro, n.º 15, Averno, Lisboa, Junho de 2011.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

MANUEL DE FREITAS

MOTET POUR LES TRÉPASSÉS


Este poema seria teu, Inês,
se não fosse de ninguém.
Ao chegarmos de Lisboa,
depois da paragem ritual
no Café Lisbela — onde tudo
se compra e tudo se perde —,
vimos uma cadeira de rodas
à venda, uma motorizada
ao lado, uma igreja vazia
da qual certamente gostariam
Andrei Tarkovsky, Tonino
Guerra ou Ana Teresa Pereira.

A poucos metros dali, o meu pai
morria, tentava penosamente resistir
a uma hemorragia cerebral. Mas
isso, claro, ninguém precisa de saber.
Apenas tu, poema, que vieste de comboio
confirmar dia após dia que o Tejo
está onde sempre esteve: triste, azul, parado.


....................................
[...]


Motet pour les trépassés, Língua Morta, Lisboa, 2011.

domingo, 10 de julho de 2011

RUI PIRES CABRAL

ENTRETANTO


Não há que ter ilusões:
nós também somos

o fim da nossa estrada.
Com estas mãos,

com este mesmo coração
é que chegamos

ao cabo do futuro,
à extrema situação

de que partimos.
Mas, entretanto,

escrevamos.


Público, Lisboa, 9 de Julho de 2011.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

JORGE ROQUE

VIOLA PARTIDA, 3



Agilidade técnica, destreza na rima, ouvido para o ritmo, instinto harmónico – e a morte, Doutor, e a morte? Como nas teclas os dedos do pianista, a posição exacta, momento, peso, a ascensão e queda de cada nota, o seu trajecto contra o silêncio que a revela – e a morte, Doutor, e a morte? Conhecimento dos poetas de outras épocas, genealogia da língua, amplitude e precisão do léxico – e a morte, Doutor, e a morte? Domínio pleno do instrumento, no fundo é disto que se trata, claridade da articulação, objectividade expressiva, intensidade interior, saturação lírica – e a morte, Doutor, e a morte?


Telhados de Vidro, n.º 15, Averno, Lisboa, Junho de 2011.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

ARMANDO SILVA CARVALHO

OS ÓCULOS DO SR. PESSOA


Ouvi hoje dizer que o poeta sr. Fernando
Pessoa operou uma ruptura
com a lírica tradicional.
Diziam também que pensou em inglês nirvânico
e fez do vocabulário lusitano
a sua pátria.
Tudo isso me parece perfídia
de quem não soube olhar na rua a sua voz.
O poeta sempre soube ser o máximo canibal
entre todos os homens.
Por vezes, o sr. Pessoa sentava-se nas poltronas
da impotência e deixava arder o vidro
dos seus óculos.
À luz que se acendia sucumbia.
E todas as palavras tremiam a um canto do mundo
cansadas do seu baile de máscaras.
O fulgor da catástrofe
não ofuscava ainda a miopia sábia
dessa estranha – pessoa.
Digam e propaguem isto em memória sua.
Que eu nunca fiz de coisa alguma
a minha pátria.


Os poemas da minha vida [de O livro de Alexandre Bissexto], org. Eduardo Lourenço, Público, 2006.

domingo, 26 de junho de 2011

E. M. DE MELO E CASTRO

SONETO SOMA 14X


1 4 3 4 2
2 3 3 0 6
4 1 6 1 2
3 2 2 1 6

5 0 0 1 8
2 1 2 5 4
1 4 0 1 8
3 2 4 1 4

3 1 2 3 5
5 4 1 2 2
3 0 4 2 5

4 3 3 1 3
5 1 2 1 5
8 9 3 5 3



Poemas portugueses: Antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI [de Poligonia do soneto], org. Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora, 2009.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

FILIPE HOMEM FONSECA

FAMÍLIA


avós pais filhos
irmãos primos e tios
gente que morre


Conta gotas, Tea For One, Lisboa, 2008.

domingo, 19 de junho de 2011

JOÃO ALMEIDA

O MILAGRE DE SÃO FRANCISCO


conto pelos dedos
ferramentas de urologia
relicários
um rim
um pôr do sol

no teu consultório sou sempre paciente
e tu entras a rir
ofereces-me um charuto
e uma caneta da propaganda médica
....
passou mais de muito tempo
e não escrevi nada
tenho boas manhãs
e sábados à noite para andar à procura

isso não chega para te meter o dedo no cu
também tenho disso respondes
vê lá por onde andas
e se te alimentas


Um milagre no caminho, Averno, Lisboa, 2011.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

ANA PAULA INÁCIO

[QUANDO M. ME ENVIOU SMS]


Quando M. me enviou sms
a perguntar plo programa de fim-de-semana
senti a angústia da página em branco de sexta-feira
do cronista de domingo
mas depois lá esbocei este plano,
mais uma mnemónica, diria:
1.º mastigar a angústia como uma chiclete
ao som dos Táxi da altura em que a cuspia
sem qualquer preocupação com a pegada ecológica;
2.º passar pela secção dos Perdidos e Achados da PSP,
do Metro e dos STCP para ver se encontraram um
coração que há dias que não sinto o meu;
3.º listar todas as músicas de língua inglesa
que expõem um broken heart no refrão;
4.º desfazer a máxima:
«Toi, tu est un blogueur.
Moi, je suis une blagueuse.» (que construí a pensar no O'Neill)
sentindo-me digna de uma serviçal de Penélope, que as devia ter,
escondidas nas dobras da história, como escrevi a Z;
5.º rever o filme de Eris Riklis e deixar-te
sobre a tua mesinha de cabeceira este bilhete:
«Não verei o limoeiro crescer!»


Aviso ao leitor: pode começar pelo último ponto, passar ao terceiro, eliminar o segundo e acabar no primeiro. Pode mesmo não sair do primeiro. Ou passar todo o tempo no terceiro. E, se chegou até aqui, pode mesmo ignorar este poema.


2010-2011, Averno, Lisboa, 2011.

domingo, 12 de junho de 2011

JOSÉ BENTO

[OS POEMAS QUE ESCREVAS]


Os poemas que escrevas,
ainda que muitos, são
um só, inacabável,
interceptado um dia:

sufocante abertura
por onde irás descendo
a um poço, uma vertigem,
com uma única saída

que, enfim, vislumbrarás
quando já não tiveres olhos.


Sítios, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

JOÃO MIGUEL HENRIQUES

LEMBRANÇA DA CASA


não esqueci ainda da casa
os contornos fundamentais

a solenidade da traça
o terraço solarengo
o pé-direito

ouço ainda a voz que lá ecoa
a inflamação do tempo
a reverberar nas portadas

conheço ainda da casa
a memória dos canteiros
e a placa de pedra com o seu nome
a inscrição de origens
que o pai mandou retirar
temendo a derrocada


Entulho, Arqueria, São Paulo, 2010.

domingo, 5 de junho de 2011

JOSÉ CARLOS SOARES

[NÃO VENHAS DEVAGAR]


Não venhas devagar
com tanta pressa. Deixa
que derrame a fome
nos quintais e a maldição

suspeite do suave
aroma do delírio. Envia
o que te sobra
ou rouba

o mais pequeno passo
por um fio.


Este perder-se [de Areia de Same], edição do Autor, Porto, 2011.

terça-feira, 31 de maio de 2011

TIAGO ARAÚJO

(ESTUDO DO ROSTO)


espelho meu, quem sou
eu? não tenho tido tempo para deixar a barba por fazer.
quanto ao resto, tenho a cara de sempre,
a que muda com os climas, e a mesma
necessidade de aperfeiçoar a técnica do
auto-retrato, de forma repetitiva e sem paixão,
para reconhecer um rosto que muda
com a luz e determinadas palavras.
foi assim que descobri esta tendência para
inclinar a cabeça para mais perto
de um dos ombros enquanto
morro,
por segundos, ao ler nesta descrição de livros alinhados
nas estantes, roupa dobrada nos armários, família
em volta da mesa, os princípios de uma ordem
provisória, que não sobreviverá sem mim
ou, no pior dos cenários, me sobreviverá,
afinal, com tudo o resto,
sem sobressaltos e uma memória
finita.

colecciono fotografias de família, vendidas em alfarrabistas
por pouco dinheiro, como prova de que estamos
a uma ou duas gerações do esquecimento.
invento dedicatórias, parentescos, datas e locais,
espalho-as em molduras pela casa para confundir visitas
e me vingar de uma memória que me atraiçoa sem descanso
porque
este rosto me levou mais de três décadas a destruir,
para agora abandonar à sua sorte, sem a gentil companhia de
desconhecidos, na descida aos infernos pelos túneis
das estações de metro ou num café quase vazio
de Alcântara, a meio da tarde, quando as mesas estão reservadas
........ para os
que não têm ocupação ou pressa. os jornais do dia no balcão e
na parede do fundo o espelho convexo em que
Parmigianino e depois Ashbery se viram
sozinhos, rodeados de objectos, e a certeza de mais uma
morte fixada em auto-retrato.


Resumo: A poesia em 2010 [de Criatura, n.º 5], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

sábado, 28 de maio de 2011

ROSA MARIA MARTELO

LÍRIOS


Um dia deixarei para sempre o casaco no cabide da entrada
outras mãos que não as minhas haverá para o recolher
outros olhos pelos meus lhe hão-de fitar depois a ausência.
Depois, nem isso.
Há um momento em que se estende a toalha sobre a mesa dos mortos
como se tivesse sido sempre a mesa dos vivos. Esse dia virá.
Tudo então estará certo e limpo como o esquecimento.
Ou quase assim.

Dispo agora toda esta roupa e escrevo
– sem frio nem perda nem desastre –
a partir desse dia que virá, esse dia depois de mim:

lírios crescem no acaso vivo da relva
uma leve poeira se acrescenta ao ar que não respiro.


Público, Lisboa, 28 de Maio de 2011.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

TERESA M. G. JARDIM

LÂMPADA


Em torno de uma lâmpada de 60 W
como um pequeno insecto ataco as palavras,
vulnerável como um insecto
em torno de uma lâmpada de 80 W.



Resumo: A poesia em 2010 [de Jogos radicais], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

domingo, 22 de maio de 2011

RUI CAEIRO

O FÓSFORO


Já tens o cigarro preso nos lábios, buscas
o pau de fósforo que o acenda e justifique
Nesse preciso instante a garantia
do teu futuro ou a salvação da tua
alma não são, se é que alguma vez
foram, o problema crucial da tua vida
sequer uma questão prioritária, o magno
problema é o fósforo, mas onde pus eu
a caixa?, e quando por fim a encontras
se a encontras, extrais dela o almejado
couto de madeira, esfregas não tarda
a cabeça vermelha na lixa da caixa,
aproximas a chama do cigarro, sorves
com avidez e deleite – e essa coisa frágil
absurda, milagrosa, que uma vida
sempre é – e por que raio havia a tua
de ser diferente? – está nesse preciso
momento plenamente justificada.





Resumo: A poesia em 2010 [de Criatura, n.º 5], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

ANTÓNIO BARAHONA

ORIENTAÇÃO


Escrevi milhares de versos
para esquecer. Amei algumas mulheres
para lembrar. Agora já posso dizer
o som em carne viva.

A cidade assemelha-se a um acampamento
abandonado no deserto. Os nómadas
partiram nos seus camelos, com provisão
de tâmaras e água.
Há restos de detritos, sinais de trânsito,
folhas arrancadas a revistas pornográficas,
ao sabor do vento, por entre pétalas sêcas.

Há resíduos de sítios onde estive contigo,
fragmentos de versos de vidro, tudo
muito nítido, anotado, vincado a oiro.


O som do sôpro, Poesia Incompleta, Lisboa, 2011.

domingo, 15 de maio de 2011

HERBERTO HELDER

[OS CÃES GERAIS LADRAM ÀS LUAS]


os cães gerais ladram às luas que lavram pelos desertos fora,
mas a gota de água treme e brilha,
não uses as unhas senão nas linhas mais puras,
e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo cheia

..............................................................................[de ar e de areia
e de fogo,
e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,
e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível
contra a turva sede da matilha,
com tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, árduos buracos negros:
queres apenas
aquela gota viva entre as unhas,
enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros
à procura do ouro


Público, Lisboa, 14 de Maio de 2011.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

RENATA CORREIA BOTELHO

A SETA


para o meu pai

o tempo, espelho tosco com que
fintamos a morte, apontado para nós
como a lança do arqueiro;

hesita, por um instante apenas,
para depois avançar, implacável
e sem retorno, na nossa direcção.

mas a feroz verdade da seta
(a um brevíssimo suspiro do embate)
é aplacada pela memória,

um libertador bater de asas
que nos recolhe das águas
quando a tempestade nos arrasta.


Resumo: A poesia em 2010 [de Small song], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

sábado, 7 de maio de 2011

MANUEL DE FREITAS

PASTELARIA LUSÍADAS



para o Rui Pires Cabral

Não se explica, certamente,
o peso camoniano do primeiro
encontro, palavras sem açúcar
nem café. E logo nós,
tão avessos a soluços épicos,
ao rigor da claridade,
às fúteis manobras da sombra.
Logo nós, relógio esquecido nos bolsos.

Ficámos de regressar à música,
sem certezas. A não ser,
talvez, um prelúdio de Chopin
incapaz de desmentir a chuva
e o brusco entardecer de Alcântara.

Palavras; dobrada folha de zinco
separando-nos da morte.


Blues for Mary Jane, & etc, Lisboa, 2004.

sábado, 30 de abril de 2011

DIOGO VAZ PINTO

A ALGUNS GRITOS DE DISTÂNCIA

más allá de qualquier zona prohibida
hay un espejo para nuestra triste transparencia
Alejandra Pizarnik

I

A dois gritos e meio de distância
a surdez que se mancha
das cores que me sobraram. Sinto
com a voz, e esta só me dói quando fica
presa às coisas numa evasão
descritiva, palavras abertas
como lâminas sonhando junto
aos pulsos.

A sul disto não encontro mais nada,
só a boca escancarada do silêncio, suja
aos cantos de ideias que
se despenharam, e nós,
dois ou três ou mais, escrevendo
enquanto lhe apodrecemos
na garganta.

Sob sóis apagados, flores que bebem
no escuro, escutando, cheirando
estas mãos e aquilo que lhes dou, e nada
disto é ainda poesia, mau hálito tão-só.
Um eflúvio de frias imagens rente
ao torpor destes lábios. Já o sabes,
agora anda – faz-me o favor –
desvia-te que me aborrece ter que
arrastar também esses dois olhos.


Nervo, Averno, Lisboa, 2011.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

PAULO TAVARES

ÓRGÃOS VITAIS


Podes despir
esse vestido de serapilheira,
mostrar os restos podres da vindima
e dizer-me: «vês, morri».

Também eu fui
adormecendo, também eu tentei
reconstruir os órgãos vitais,
desenhar um a um os contornos do corpo,
embora me faltassem as ferramentas
para materializar o complexo circuito
da memória.

Agora, olhas-me
com os mesmos gestos estáticos,
enquanto o coração palpita noutro lugar
e a boca vai soltando larvas e morcegos.

Podes dizer-me que morreste.
Os mortos entendem-se bem.


Resumo: A poesia em 2010 [de Minimal existencial], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

LUÍS FILIPE PARRADO

COM UNHAS E DENTES


Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.


Resumo: A poesia em 2010 [de Criatura, n.º 5], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

INÊS DIAS

OS POETAS


Para o Rui, o Manuel e o Diogo

À mesa os poetas
trocam imagens e calibram versos
como se procurassem a letra
certa para o seu mapa.
Guardam silêncios sobre folha de ouro
ou constroem pontes súbitas
entre o Amor – assim mesmo, maiúsculo –
e a infância. Salvam raparigas em flor
mas sacrificam a Primavera só
para depois poderem recolher
a beleza, ainda viva,
ainda trémula, do chão.

Ouço-os e espero o regresso a casa
para enterrar finalmente o pássaro morto
e o gato que agonizava no dia do meu aniversário.
Escolho uma música que me devolva
repetidamente todos os amigos
e torne, por isso, menos desolado este final.

E passo as mãos devagar,
com a curiosidade e avidez
que reservava antes para os tesouros
– ou os primeiros beijos – no final de cada livro,
pelas memórias que os poetas abandonaram sobre a mesa
e eu levei ciosamente nos bolsos.


A propósito de andorinhas [com Manuel de Freitas, Rui Miguel Ribeiro e Diogo Vaz Pinto], edição dos autores, Lisboa, 2011.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

EDGAR CARNEIRO

1913-2011

domingo, 17 de abril de 2011

JOSÉ MIGUEL SILVA

ANDRÉ GIDE

Para o Joaquim Manuel Magalhães

O mais veloz corredor da sua geração, pelo menos
no arranque, não admira que tenha chegado primeiro
a muito lado. Mas tão cedo partia, invariavelmente,
que nem louros nem medalhas, pois a prova ainda não
tinha começado. Sofria essa mania de correr por fora
de qualquer certame, por conta própria, em mandatos
espontâneos, auto-atribuídos. Deste modo, andava
sempre sozinho, porque quando os seus émulos partiam,
já ele estava em casa, a preparar com a sombra a sua
próxima aventura, que no fundo consistia em abrir pistas
para quem viesse atrás. Assim, se queria conversar com
alguém, só lhe restava fingir uma queda no senso-comum,
uma lesão no joelho – e amiúde o fazia, pois na verdade
pouco tinha de misantropo, chegando mesmo a execrar
como maldita a compulsão que o levava a partir antes
do tiro de largada, e a chegar primeiro onde ninguém
o esperava. Talvez isso explique a timidez de anacoreta
que sempre exibia, e a prudência relativa das suas passadas.
Dez ou vinte anos depois, acelerados epígonos diriam
morosas as suas corridas, convenientemente esquecidos,
como é próprio de retardatários sem vergonha, que se
faziam melhores tempos (os que faziam), era em pistas
utilmente batidas e inauguradas por ele, o pujante pioneiro.


Público, Lisboa, 16 de Abril de 2011.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

FERNANDO PINTO DO AMARAL

AZUL


Um dia hás-de nascer fora de ti
num sobressalto novo deste céu
onde se afoga a luz da madrugada
já sem nenhuma estrela que te aceite
a translúcida febre das palavras.
Um dia hás-de romper os cegos nós
do monstro a que chamavas coração,
o antigo labirinto que te ilude
a inocente máquina do corpo
na escuridão dos passos desastrados
em busca de um azul que te conheça.
Um dia hás-de falar sem dizer nada
que o mundo compreenda e será teu
esse primeiro azul da madrugada.


Saudade: Revista de poesia, n.º 11, Associação Amarante Cultural, Amarante, 2009.

terça-feira, 5 de abril de 2011

JAIME ROCHA

[O HOMEM VÊ UMA MANCHA AO FUNDO A]


O homem vê uma mancha ao fundo a
mexer-se na sua direcção. É a barca de
Caronte que regressa. A terra engrossa
quando a água é empurrada e o homem
devorado pelo lixo. Os seus pulmões
enchem-se de vazio e morrem, como dois
milhafres deitados num campo de sal. A sua
dor tornou-se mais forte do que as raízes que
rompem o alcatrão. Uma coisa não pássaro
o que ele vê, um vidro a nascer dos socalcos,
um crepúsculo.


Resumo: A poesia em 2010 [de Necrophilia], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio e Alvim, Lisboa, 2011.

quinta-feira, 31 de março de 2011

ARMANDO SILVA CARVALHO

SE TU POTEVI, O SOL DA QUELLA VISTA


Meu caro, a inércia é filha do frio, este filho do tempo,
Pai de todos os males.
Tenho dentro de mim um meteorologista
Disfarçado de poeta húmido.

O sol que tanto reverenciei em puro êxtase,
E cantei como se ele fora
A aurora do futuro
Mudou-se por mim em lua despeitada.

Esconde-se essa senhora,
Umas vezes altiva, outras vezes submissa,
Troca de face, de porte, de vestido,
Não me sabe entender no meu pensar sisudo.

Não sabe ou então sabe de mais,
Que a minha cabeçorra não vislumbra a ciência
Que ma desvela pálida,
Ou amareladamente inquietante.

Emimesmado estou, que é o mais correcto
Para quem de si só cuida conhecer o pouco
Que os deuses autorizam. Não durmo, não me atino
E queixo-me de tudo.


Resumo: A poesia em 2010 [de Anthero, areia & água], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

terça-feira, 29 de março de 2011

ANTÓNIO BARAHONA

PULSAÇÃO


Perene é ser soneto: eis do futuro,
essa canção com oitocentos anos:
sábios, mil sons ecoam bons sopranos,
no timbre d'árias tensas de ouro puro.

Catorze versos a fundir degraus
(ligas de cobre e prata e elixir)
refeitos pra durar até que expire
seu último cantor, à flor do caos.

Perene é ser soneto, que reside
na cópia à rasa essencial do verbo:
tal como a roda, o cubo e o triângulo,

vem inscrito no código soberbo
de quem tece um casulo e sente livre
o sopro do seu sangue num coágulo.


Resumo: A poesia em 2010 [de Criatura, n.º 5], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

sábado, 26 de março de 2011

ADÍLIA LOPES

[NESTE DIA CINZENTO]


Neste dia cinzento
procuro um verso
e não encontro
não tem importância


Resumo: A poesia em 2010 [de Apanhar ar], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

terça-feira, 22 de março de 2011

MANUEL VAZ DE CARVALHO

FUNERAL


Meu velho cão, quero que vás ao meu enterro!
Mas nada de lamúrias, a uivar...
Irás contar quando, de serro em serro,
Apátridas, libertos, par a par.

Por fragadas do demo e da esconjura
Vales dormentes, touceiros devassando,
À senda, nem eu sei, de que aventura,
Fomos na vida efémera sonhando...

Irás! Quero levar de perto o teu focinho!
E ao voltares, de olhos tristes, ao teu ninho
Terás sempre presigo e regalia...

E se quem me ficar for de justiça
Terás também inteira a linguiça
Da qual só te calhava a pele vazia.


Poemas do Solstício, Câmara Municipal de Vila Real, 2000.

sexta-feira, 18 de março de 2011

ANTÓNIO SALVADO

NESGAS DO AZUL


Não sei se a tua voz, ou se o murmúrio
do fim da tarde que se ouvia quase
como uma gota d'água que tombasse
em calmo lago ali alheio e mudo.

Nossos olhos retinham o crepúsculo
que lentamente audaz se aproximava
e pelo céu ainda alavam pássaros
que sulcavam as nesgas do azul.

Foi um momento singular aquele
em que os sentidos todos reunidos
apelavam ao gozo do silêncio:

um instante perene de certeza
de que era fogo aquilo que vivíamos,
que não se via: bramidor ardendo.


Saudade: Revista de poesia, n.º 11, Associação Amarante Cultural, Amarante, 2009.

segunda-feira, 14 de março de 2011

EDUARDA CHIOTE

ACEITAR A PERDA


Estou a morrer e ninguém me diz se por desuso
ou educado
esquecimento.
Para onde, em segredo
deserto.
Ouve: quem sou?
O que é um poeta? Uma criança,
filha
da rima
a quem se diz não fales com a boca cheia? Tira os cotovelos
de cima da mesa?
Tantas palavras. Muitas são as que não distingo.
Branco,
por exemplo.
Embora escute branco como a neve,
uma mortalha,
o leite: Acaso, branca, a fome masculina
do teu seio
também? — Pensava que o desejo era branco.
Mas branco, branco, terrivelmente branco,
apenas o olhar
que vendo se vê demasiado
e em pura crueldade
e indiferença,
ó morte — única mãe.


Poemas portugueses [de O meu lugar à mesa], org. Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora, 2009.

quinta-feira, 10 de março de 2011

MIGUEL-MANSO

O FOGO, A CIDADE


às vezes sobre
as palavras pesa um dia luminoso, a clara
imprecisão de um gesto
o corpo inclina-se para a água
do poema

a roupa estas mãos o torpor da casa
quando o silêncio a morna demorosa voz
se desfazem no ritmo entontecido
do mundo

caminho descalço sobre a página
olho uma outra vez
voltando-me para trás
o fogo, a cidade


Quando escreve descalça-se (3.ª edição, revista), Trama, Lisboa, 2011.

sábado, 5 de março de 2011

MANUEL DE FREITAS

MÁRIO


"O tempo que aos outros foge
cai sobre mim feito ontem",
como dizia o outro
que não consentiu em sê-lo.
E nestes tempos de rarefacção
e escárnio uma glosa pode às vezes
dar um jeito danado — para
aqueles que ficam, claro.

Ah, Mário, quantos eléctricos
eu apanhei ou perdi
em frente à lápide sóbria
que celebra não sei se a ti
se ao abandono corriqueiro
de um escritório de aluguer...
Coisas da vida, entenda-se,
os percursos e os discursos
que confluem no trânsito homicida
de um dia qualquer, como os outros.

Enquanto Lisboa se resigna
a ser esta mistura podre
de melancolia e paz
que para mim está bem
e vai dando
para a curta viagem dos ossos.

Nos Cafés também "espero a vida
que nunca vem ter comigo",
a putéfia. Nada mudou. Nada,
Mário. Só que nos "Cafés", agora,
pedem-se empréstimos para comprar
carro e casa ou manuseiam-se discos
por sinal merdosos, propícios
a uma época que voa ao rés da Bolsa.
A vida, claro, continua sem aparecer por aqui.

Mas lepidópteros ainda há,
uivando de alegria alegre — e restos
de nada nas coisas, a chamarem-nos de tão longe
para a proximidade do fim.

Era só para te dizer isto.


Game over, & etc, Lisboa, 2002.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

JOSÉ MIGUEL SILVA

FALA CIRCE


Três e meia da manhã.
É inútil procurar o candeeiro.
No estuque da insónia,
o filme recomeça.
Que fim será o fim?

Pretéritos prazeres,
cigarros consumidos
– é isto o coração:
um cinzeiro de metal?
Preferia não fumar.

Quero tanto o teu amor
que termino a odiar-me.
Quem me dera ser o Rambo,
saber sempre o que fazer ao inimigo.
Não sei por que sorrio,

quando tudo o que me resta é a magia
que me traz o Halcion: sonhar
que não existes, nem o filme,
nem o fumo, nem o frio, nem o fosco
cinzeiro de metal.


Poemas com cinema [de Ulisses já não mora aqui], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

ALBERTO PIMENTA

[QUE PUS A HIPÓTESE]


que pus a hipótese
de não ser
afinal um sonho
mas de estar no cinema a ver
um filme japonês
com as máscaras
as cabeças rapadas
a guincharia
os cânticos
acompanhados
pelos sistros
ou então seria um filme
americano
eu tinha naturalmente adormecido
e agora
estava a sonhar

mas era um recitativo alto
e logo ali no cinema
não podia ser
só se o ruído da tosse
dos rebuçados e das conversas
para saber se o bacalhau
já estaria no ponto
permitissem
esta comunicação paralela
não sei

mas também não sei
se pus esta hipótese
mais tarde
já acordado
isto admitindo
que nalgum momento do sonho
eu acordei
ou agora mesmo que estou a dizê-lo
ou no momento
do sonho
caso isto fosse sonho
ou do filme
caso isto fosse filme

era inquietante
sem dúvida
porque o recitativo lembrava
digo eu agora
ou lembrou-me no sonho
ou no filme
um músico de Pergamo


Poemas com cinema [de Autobiographie mutuelles 2], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

JORGE GOMES MIRANDA

ARTE POÉTICA

"You have to have been in love to write poetry"
RAYMOND CARVER

Tens que ter sentido medo
angústia, desolação
pois para falar do amor
sem metáforas estivais
é preciso ter vivido em quartos lívidos,
onde um espelho,
um olhar de viés,
um sapato arremessado
prenunciam o poema.


Pontos luminosos, Averno, Lisboa, 2004.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

RUI PIRES CABRAL

FORA DO LUGAR

para a Daniela

A dor é uma desordem inimiga
das palavras com o silêncio todo fora
do lugar. Saberemos tomar um caminho
por essa floresta escura? Poderemos
sequer recuperar a pequena bússola partida,
a caneta e o papel, as nossas certezas
de trazer no bolso?

Não nos avisaram contra o medo,
não nos disseram que pode chegar
a qualquer hora, deslealmente,
enquanto o sol dorme na paisagem e as ervas
se levantam para receber o Verão. E agora
que quase nos perdemos, sem mapa ou sentido
que nos sirva, o nosso único guia é o amor
dos que nos esperam numa sala branca
onde o chão nos falta e não há estações.


Periférica, n.º 6, Vila Pouca de Aguiar, 2003.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

ANNA MAGNANI


A mãe de Luis Buñuel, no fim da vida,
folheava revistas, página por página,
não reconhecia os filhos, placa giratória
em torno da qual os objectos se instalavam
ou, de súbito, nasciam. A mãe de Luis
Buñuel, no fim da vida, feita um aviso.

A luz inclina-se nos telhados de Lisboa,
assegurando que nem um sopro condensa
no negativo. Há noites em que conseguimos
alcançar uma tristeza comum: a cadela
mordisca a pata, eu fumo um cigarro.
Do enquadramento resulta a insensatez do equilíbrio:

uma greta de frieiras, o cieiro nos lábios,
a maldade que resiste numa máquina eléctrica,
desligada. Escrevo à luz das velas,
haverá linhas baralhadas. Um comércio
de sucedâneos, de imitações rasteiras
de vigarices caducas, tem dourado o século.

Não têm conta os utensílios baratos
que se podem comprar, até a crédito.
Finge-se que não se percebe. Como sofrer,
sem reclamar o sofrimento? Um rosto que exige
renúncia, a fé toda que foi extraviada,
um abismo, de olhos enxutos.


Poemas com cinema [de Peças desirmanadas e outra mobília], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

FERNANDO DE CASTRO BRANCO

NÁUFRAGO


"Esperas que te digam que ainda não morreste".
Este verso naufragou faz tempo no meio de um poema
mau e vejo agora que mereceria melhor sorte.
Retiro-o cuidadosamente das ruínas
como quem retira do meio dos destroços
um corpo dado à costa numa praia deserta.

Deixo-o ao relento o tempo necessário
para que o sol lhe entre nos pulmões
e lhe beba a água em excesso. Se respirar
uma vez mais, quiçá para seu mal,
ensaiará o passo seguinte, integrando
ossadas de um novo cemitério


A caminho de Avoriaz, Cosmorama, Maia, 2011.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

NATAL EM OZIÓRSSK


Ainda estou vivo, apesar de enterrado
numa província do antigo império.
Estou nos Urais, na cidade de Oziórssk –
...cidade dos lagos –
trabalho muito e ganho pouco. Tenho o
meu apartamento de duas assoalhadas onde
faço obras há três meses sem parar. Temos
aqui muita neve e muito frio e os ursos
não lêem a poesia portuguesa, nem a russa.
Estou no lado oposto da Europa, a 40
kms da Ásia... mas na Europa. (Somos um
bocado europeus.) Não vejo hipótese de
ir para Portugal até um milagre qualquer
acontecer, mas não vale a pena ter pena de
mim, eu tinha muitas saudades da neve.
Digo-te, por isso, um bom natal.
Oziórssk, dezembro de 1995.


Versos e prosas em forma de Natal [de Não é certo este dizer], Relógio d'Água, Lisboa, 2010.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

POESIA INCOMPLETA

sábado, 29 de janeiro de 2011

INÊS LOURENÇO

VELHO CELULÓIDE


Caixeirinhos de Grandela,
costureirinhas da Sé, futuras
mães de família obesas, trinados
de meninas da rádio, saloias
românticas, lavradores de
cena, pais tiranos, casas
apalaçadas, serviçais complacentes,
negreiros de boa alma, algumas
tabernas e algumas guitarras.

Pontos culminantes:
o triunfo internacional do
artista ignoto à frente de um
postal do Arco de Triunfo, da Torre
de Londres ou de alguns
arranha-céus. Os beijos
à cinema, seguidos de grandes
planos da paisagem no Fim
que acaba bem o ecrã a preto
e branco em enorme letra gótica,
eles casam.


Poemas com cinema [de Logros consentidos], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

domingo, 23 de janeiro de 2011

ROSA ALICE BRANCO

NAS FOLHAS DE CHÁ


Estamos de passagem mas em caso algum
esqueceremos o orvalho. Os nossos poros
ossificaram o sangue, é o que a terra diz:
– o alcatrão não é o meu vestido de luto,
mas a pele irrespirável da minha carne.
Agora quem vai querê-la por noiva?
As grinaldas estão cheias de poeira e a
marcha nupcial desafina as estrelas.
O sol feito de gasolina na nossa pele
de verão apodrece depressa nas rugas.
Ainda ris por entre as frestas negras
e deixas entrever outro destino nas folhas
de chá. Mesmo assim o teu cadáver
é belo entre as flores do campo que resta
e o fumo do comboio que te cinza.
O orvalho é uma palavra dócil. Às primeiras
horas quando os despojos se deixam invisíveis
ainda me extasias como a uma princesa a florar
a erecção inicial antes da radiografia pulmonar.
Não choramos por nós quando te morremos?


Saudade: revista de poesia, n.º 12, Associação Amarante Cultural, Amarante, 2010.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

FERNANDO ECHEVARRÍA

O VAGAR FOI DESCENDO SOBRE AS CASAS


Tinham a luz retida no outeiro
e a tarde de Março a sustentá-las,
envoltas no esplendor do seu sossego.
Em baixo, o rio quase parava.
Era o mar a subir, mas muito lento.
Como se houvesse pelo azul das águas
um defluxo recíproco movendo
luzes poentes e paletas gastas,
onde já se destaca a de ouro velho.
E, depois, o vagar ainda baixa,
enquanto um arrepio arrisca certo
uma ríspida ruga, apenas clara
porque a secunda o céu azul. O resto
deve-se às sombras que se alongam, graças
ao contraluz desfigurando o outeiro.


Saudade: revista de poesia, n.º 12, Associação Amarante Cultural, Amarante, 2010.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

HELDER MOURA PEREIRA

BROTHERS ON WHEELS


Viajas um pouco acima
da fixa viagem
da terra, eu sou
o teu amigo, o irmão
que nunca saiu
e regressou.
Mar e mãe se enredavam
por coisas de sangue
e confronto, presos animais
de fumo e noite.
E motores ao corpo
dos heróis, depressa
passam, facas
na pele ardendo.
Eu visto
as tuas camisolas
e a vida que viveste
já a tenho. Quero
que o teu murmúrio
me perturbe, a voz
é um ponteiro
sobre o tempo, os peixes
não deixam de bater
nos vidros.


Poemas com cinema [de Esta passagem], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

JORGE DE SOUSA BRAGA

MORTE EM VENEZA


De muitas coisas se pode morrer
em Veneza
De velhice de susto
de peste

ou de beleza


Poemas com cinema [de O poeta nu], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

MANUEL ANTÓNIO PINA

A ILHA NUA
(Depois de ter visto o filme «A ilha nua», de Kaneto Shindo)


animal passageiro a quem já sobra
dentro da boca o susto da viagem
tu que com cuspo aprendes a paisagem
e és o juro que a usurária cobra

animal educado a quem a dor
repete intimamente e habitua
e tão intimamente continua
a breve continência exterior

tu que passas sem pressas sem assombros
e que afogas na sede que te apresa
teu líquido senhor que pesa pesa
nos teus cristóvãos portugueses ombros

tu que com sono a glabra ilha lavras
e com o sonho avidamente a usas
na dura arquitectura das palavras
tu que tudo te dura das palavras


Poemas com cinema [de Ainda não é o fim nem o princípio do Mundo calma é apenas um pouco tarde], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

MANUEL DE FREITAS

5 010509 001229


É o que se chama um "higiénico": latas,
comida feita e embalada, whisky,
cerveja ou vinho (quando não os três).
Deve beber-lhe bem e mudar pelo menos
duas vezes por semana a areia ao gato.
É tímido, inseguro e – por isso mesmo –
extremamente rápido a arrumar as compras.
Vai pagar outra vez com cartão. Hoje
parece mais triste, talvez por no seu íntimo
saber já que vai escrever um poema
sobre mim, mera ajudante de leitura
dos códigos fatais em que cada um se expõe.

Mas para quê tantas palavras? Bastava-lhe
ter dito que me chamo Isilda
e que a vida que tenho não presta. A dele,
suponho, não será muito mais feliz.
Escusava era de maçar a gente
com o que sofre ou deixa de sofrer.

A minha sabedoria é muda, desumana:
um dia enlouqueço ou fico para sempre presa
a um pesadelo sentado, com barras transparentes.


Isilda ou a nudez dos códigos de barras, Black Sun Editores, Lisboa, 2001.

domingo, 2 de janeiro de 2011

LYRICA