quinta-feira, 30 de outubro de 2014

MARIA DA CONCEIÇÃO CALEIRO

[THE FIRST DAY A GIRL DIES]


[...]

The first day a girl dies
No primeiro dia em que uma rapariga morre, talvez ela se tenha lembrado da verdade
Com a sua cabeça esvaziada

No segundo dia em que uma rapariga morre
Com as suas pernas decepadas
Talvez tivesse chegado perto da verdade

No terceiro dia em que uma rapariga morre
Com as suas orelhas cortadas
Talvez tivesse ouvido a verdade

No quarto dia em que uma rapariga morre
Com os olhos arrancados
Talvez tivesse visto a verdade

No quinto dia em que uma rapariga morre
Com a sua língua sacada
Talvez tivesse falado a verdade

No sexto dia em que uma rapariga morre
Com as suas mãos desfeitas
Talvez tivesse escrito a verdade

No sétimo dia uma rapariga
Is going to die

[...]


Too much, Alambique, Lisboa, 2014.

domingo, 19 de outubro de 2014

INÊS DIAS

PONTO SOMBRA

Para o Barnabé,
primeiro e único

Um nó cego no bordado
da manhã. E a ternura
interrompida pelo desfazer
dos dias até esse olhar
depois de tudo,
onde aguardava,
cauda de fora, a morte:

passar sob a pele
(uma dor mais antiga)
a linha que já
não nos prende,
cortá-la com o último beijo,
rematar um coração
cada vez mais do avesso.


Da capo, Averno, Lisboa, 2014.

MANUEL DE FREITAS

MARTINI


Insistimos num facto,
aviltante como nós
– ou talvez por isso.
Não sei se será bem
um facto, isto
que me fez seguir-te,
embora o meu caminho
fosse de facto aquele:

a paragem do 42,
que me traz como sempre
a casa, ao sítio do costume,
cercado de livros, paredes
e vizinhos. Queres coisa
mais banal? Talvez
este coração azul,

a tinta em que escrevo
que são seis horas da manhã
e que os cigarros começam
a saber-me mal (o Martini
não, valha-me isso, ao
menos – que pouco é
mas para nada serve).


Inês Dias [de Game over], Nigredo, Lisboa, 2014.