domingo, 26 de julho de 2009

ARMANDO SILVA CARVALHO

O FRIO


Tocar com a língua
na cúpula do ar.

Acomodar os víveres
movimentar o vento.

Fazer deste poema
um frigorífico.

Nas prateleiras ácidas
o silêncio (duplo) dos peixes;
o choro terno e tenro
da hortaliça.

Tocar com as palavras
na cápsula do mar.

Incomodar os vivos.
Mexer na carne com dedos
subversivos.

Impor aos homens
esta abundância fria
colhida nos catálogos.

A elegância
dos ovos
em repouso.

Um mulher serena sonha
com o frio; corre-lhe
pelo corpo o leite desnatado
e fica nos anúncios
pensativa.

No íntimo do corpo
há fendas numeradas
onde o fresco se atreve
a conservar os nervos.

Está na hora
de refrescar a boca.

Donas de casa
e pensadores diários
eis aqui uma demonstração
gratuita do frio.


A Perspectiva da Morte [de O Comércio dos Nervos], org. Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.