A princípio somos nós que queremos as palavras, que elas se entregassem era o nosso desejo mais fundo, o mundo tornar-se-ia completo e a vida revelar-se-ia no seu rosto pleno. Mas nada acontece como pensamos. Sucedem-se anos de lutas, cansaços, vitórias pequenas, críticas razoáveis nos jornais, amigos que dizem que gostam e nós sabemos que não assim tanto, estão a ser amáveis e devemos do coração agradecer-lhes, porque gostarem de nós vale muito mais do que tudo o que escrevemos, embora isto seja apenas o começo da aprendizagem. Eis que algo inesperadamente se altera, tão inesperado que só nos damos conta depois, são agora as palavras que nos querem, elas mesmas que se entregam, de certo modo estendendo-nos o que sempre desejámos, tão diferente afinal, tão sem sorte, olhado do tempo que passou. Chamam-nos, puxam-nos, insaciáveis não nos largam, e nós vamos, vamos, no lugar a que chegámos quase nada nos chama e nós pouco queremos ouvir, que havemos de fazer senão ir, ir, mesmo que não haja brilho, mesmo que não haja esperança, e o jogo só possa terminar com a derrota do único jogador. E é isso que repetem os braços caídos com que seguimos, seguimos, sabendo que o mundo só fica cada vez mais gasto e a vida, rosto pobre que enfim olhamos nos olhos, já só nos mostra a nossa morte, os ossos salientes sobre a pele baça, a testa cada vez mais alta, a cara que teremos quando formos velhos, a nossa, exacta.
Nu contra nu, Averno, Lisboa, 2014.