quarta-feira, 25 de março de 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA

SUICIDA


Quando me lancei fi-lo na convicção
de que o meu sofrimento mudaria de dono,
ficaria para ela, merecido legado
para quem sempre gostou de nutrir o ciúme,
essa carnívora planta a cujo habitat
chamamos coração. Eu pensava desfrutar
da vingança por toda a eternidade.
Mas o facto é que à medida que o meu corpo
descia em direcção ao rio um calafrio
fez-me pôr em dúvida a eficácia do castigo:
e se ela recusar a expiação, se for mentira
este consolo que me ofereço, derradeiro?
Ao passar, amigos, pelo tabuleiro de baixo
já ia arrependido. O pânico safou do meu rosto
o beatífico sorriso. Que estúpido sou,
que mesquinho, bem mereço... e não tive tempo
para pensar mais nada. Tu que passas
por esta lápide, escuta: ninguém morre de amor.
De orgulho sim, de despeito, de pura idiotice
ou desejo insaciado. E o sermos amados
quase sempre só depende de nós.


Telhados de Vidro, n.º 2, Averno, Lisboa, 2004.