Um movimento mal calculado, um atrito ou um deslize inesperados, a faca desviou-se do seu curso, nada a fará voltar atrás agora. O gume encontrou o dedo, atravessou a pele, rasgou vasos sanguíneos, camadas sucessivas de tecido celular, imobilizou-se junto à trama fibrosa dos tendões e recuou, afastado num gesto reflexo a que, um instante depois, se juntou em clarão a dor. Só então o sangue em lençol fino, progressivamente mais grosso e escuro, cobriu o dedo e começou a gotejar, formando pequenas poças nos lugares de sobreposição, alternadas com pingos em distribuição aleatória. O desalento, a revolta, a raiva de não reverter o tempo, a realidade, a vida. Inúteis, bem sabes. Venha pois o raciocínio, a acção consequente: avaliar o golpe, lavar, desinfectar, fazer um penso em compressão para estancar a hemorragia. Iniciar o lento trabalho da aceitação. Delimitar, conformar, deslocar para outro ângulo de onde descobrir novo olhar. O poema, por exemplo.
Canção da vida, Averno, Lisboa, 2012.