Para o Rui Miguel Ribeiro
Quando tudo é mentira,
a mentira torna-se invisível
como o dedo do encenador.
O pano sobe, de fumo,
e nada representa nada
nem ninguém.
Às escuras, o público sorri,
o público aplaude, julgando
seguir, entender a história.
Se um grama de verdade,
todavia, custa hoje
setecentas ilusões apodrecidas
e o preço da entrada
é suspensão da descrença,
só de fora é perceptível
o entrecho da decomposição,
com seus ritos e porquês
assinalados a vermelho:
o vinho do desejo cultivado
em bardos de necessidade,
a bolha esburacada da democracia,
a corrente de facadas e suturas
a que chamamos progresso,
o beco sem saída da evolução.
Cão Celeste, n.º 4, Lisboa, 2013.