domingo, 12 de abril de 2015

A. M. PIRES CABRAL

O POETA


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O Poeta parecia finalmente mergulhado em paz interior, arduamente conquistada. Os seus lábios, ainda enamorados do verbo, não cessavam de mover-se: saboreava desse modo, imaginei eu, a doce acalmia que sobrevém a um parto bem-sucedido. Eu olhava embevecido e via naquele mover de lábios o sorriso cansado de uma puérpera que repousa no leito já com o recém-nascido nos braços. Coisa bonita de ver.

De súbito, os seus lábios começaram a mover-se mais depressa, com maior amplitude. "Vem aí outro poema!", pensei, excitado. "Eis que a força criadora se apossa de novo daquele espírito atormentado na perseguição do Belo." Temendo que se pusesse a levitar, senti-me tentado a segurá-lo por um braço, recomendar-lhe contenção, que estava num lugar público. Só não o fiz porque num sum dignus.

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A navalha de Palaçoulo, Cotovia, Lisboa, 2015.