terça-feira, 19 de agosto de 2008

FERNANDO GUERREIRO

[A CONSCIÊNCIA MELANCÓLICA DAS PALAVRAS]


A consciência melancólica das palavras
abandonara-o, comunicando ao que escrevia
a solidez da crosta que uma vez removida
nos dá a ver, por detrás das barreiras
do ser, as formas mais inseguras da vida.
Ultimamente, no entanto, custava-lhe
encontrar um lugar que lhe agradasse
para as palavras e pedia mais tempo
para depor no chão o fardo de dor
a que se reduzia para ele o destino
da poesia. Restava-lhe, talvez,
o relato das formas menores
de existência – em que as palavras,
por cima do abismo, ainda descobrem
a vegetação a que se agarrar
no caminho da subida. Mas
a poesia, para se escrever,
requer um mínimo de experiência –
migalhas de ser, pelo som coloridas,
antes que sobre elas caia
a cortina do crepúsculo.


Caminhos de Guia, Black Sun Editores, Lisboa, 2002.