quarta-feira, 28 de setembro de 2011

INÊS DIAS

PEQUENOS CRIMES ENTRE AMIGOS


Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
o apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.

Podes até queimá-lo –
com cuidado, por favor –
quando estiver mais frio;
ou enterrares os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.
Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

ROSA ALICE BRANCO

AS VESPAS DE PALERMO


A virgem sorri-me com boca de mosaico,
os meus olhos mergulham nos arabescos do chão,
geometria do sol descendo as ruas de Palermo.
Insectos aceleram bzz bzz até nas passadeiras
e Cristo impávido na igreja em frente.
Mas Cristo não atravessa as ruas:
está um pouco acima da cruz, um pouco antes.
Os anjos abandonam a escuridão do templo.
As vespas parecem pirilampos
e bzz bzz são as asas dos anjos
conversando sobre os turistas do dia.
O bzz bzz das vespas cá em baixo é de encontros
na noite de Palermo. Assentos tão etéreos
com um copo na mão, a outra na cintura
e nos punhos das vespas, vespas, vespas
atordoando o riso, o beijo passageiro.
E já os anjos estão a postos na sua nudez redonda
enquanto as vespas dormem um sono de alcatrão.
A ceia prepara-se. Cristo não nega o seu lugar à mesa.
Entre um bzz bzz e outro, olho-te no b barroco ou bizantino
e não aceito a tua morte, tu que atravessas acima das vespas,
vespas, vespas, acima do Etna que sobe ao céu
enquanto dentro se cozinham os infernos: a tua ceia,
os restos que deixaste para nós no microondas.


Gado do Senhor, & etc, Lisboa, 2011.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

VASCO GRAÇA MOURA

ELEGIA BREVE À POESIA


fugitivo passar pela retina,
no virar de uma esquina ou de um silêncio,
a tua ausência é este ensombramento,

porém que a despedida seja breve
e que voltes com um relâmpago, um
desvendar-se do mundo entrecortando

dobras desamparadas do real.
e eu pergunto: que vozes do crepúsculo
se apagavam então? talvez o vento

agitasse tristezas na folhagem,
e esse fosse o frémito dos seus
melancólicos sinais rumorejando,

ou talvez fosse a cama de hospital
e o branco desolado das paredes
e a mudez de estranhos aparelhos,

ou talvez fosse o próprio esquecimento
de que irias voltar, ou resvalar
numa lenta passagem de tercetos.


Relâmpago, n.º 27, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2010.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A. M. PIRES CABRAL

RECADO AOS CORVOS


Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Deixai só a incombustível
memória das labaredas.


Aqui e agora assumir o Nordeste [de Como se Bosch tivesse enlouquecido], org. Isabel Alves e Hercília Agarez, Âncora Editora, Lisboa, 2011.

domingo, 11 de setembro de 2011

JORGE DE SOUSA BRAGA

SERMÃO DA MONTANHA


1.
Cho Oyo
Dhaulagiri
Evereste
Gasherbrum II
Gasherbrum I
Lhotse
Kangchenjunga
Sishma Pangma
K 2
Makalu
Broad Peak
Manaslu
Nanga Parbat
Annapurna


2.
Quando chegares ao cimo da montanha
continua a subir


Público, Lisboa, 10 de Setembro de 2011.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

FREDERICO LOURENÇO

ELEGIA


1.


Tempo de dança num vago compasso de bela toada
fecha solene a última festa do longo inverno.
Chove de novo na húmida noite gelada de março;
nada faria prever o perfume da música nova.

Vejo agora teu rosto no espelho da sala dourada;
luzem teus olhos ao brilho das velas nos lustres acesos,
quando de novo a orquestra entoa a música nova,
sempre que soa no brilho da sala a triste gavote.

Música minha alheia não soa às árvores altas:
ramos e folhas ondulam à chuva na escura montanha,
cantam por mim o que vejo ao ver-te no límpido espelho,
hoje que mais do que nunca rebrilham teus olhos brilhantes.

Pena seria portanto perdermos a última dança;
ambos sabemos que vêm vazios compassos de espera,
logo que raie daqui a minutos a pálida aurora,
ela que traz como sempre o ocaso dos nossos amores.

Relâmpago, n.º 27, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2010.

domingo, 4 de setembro de 2011

MANUEL DE FREITAS

STABAT MATER


Benilde, ao balcão, reza de pé
a novena do Menino Jesus
de Praga. Alguém, que nunca
mais vi, tinha a mesma devoção
– e um mapa de heroína
a servir-lhe de braços.

Custa-me interromper a
novena para pedir, claro,
mais uma cerveja.
Tão diferentes modos de rezar,
debaixo do relógio que há vários anos
nos diz que ainda não são quatro.

Prevêem, na rádio, uma descida
da temperatura. É tudo o que
me importa saber.
Enquanto Benilde, ao balcão,
continua a rezar ao Menino Deus.

Fez-se silêncio. Tem
uma garrafa vazia ao lado.
Acendo um cigarro
em memória de Pergolesi
e escrevo, sem querer,
o primeiro poema do ano.


Juxta Crucem tecum stare, Alexandria, Lisboa, 2004.