domingo, 30 de março de 2014

VASCO GRAÇA MOURA

MAIO DE 68


um belo dia em maio
de sessenta e oito, tempo
feito de equívocos,
em alfama, as vizinhas conversavam.

a roupa secava ao sol.
os filhos estavam na escola.
elas falavam dos maridos.
e comentavam luísa, a

apanhadora de malhas em meias,
com o marido fora há dez anos,
sem dar notícias. tinha havido
desordens entre quatro

homens daquele bairro, por causa
de luísa, que os
ignorou e continuava a
cuidar do filho e a

apanhar malhas, sossegadamente,
na janela do rés-do-chão,
inclinando a cabeça como
a rendilheira de vermeer.

estavam as vizinhas
nisto, deplorando
o desperdício da
juventude de luísa,

por absurda esperança e
por delicadeza
assim perdendo a vida, quando
se aproximou um estranho.

deitam-se a adivinhar.
aquele bem podia ser fernando,
marido de luísa
e alvoroçaram-se e um cão ladrou.

no beco, entre
os potes de sardinheiras
e a roupa ainda a secar,
estavam enganadas, mas

tinham razão num ponto:
era um marinheiro grego,
exausto, ainda a ofegar,
depois de uma cena de porrada

das antigas, que não tinha
nada a ver com luísa,
mas que se
chamava odisseus.


Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Laocoonte, rimas várias, andamentos graves], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.

sexta-feira, 28 de março de 2014

NUNES DA ROCHA

[NÃO MAIS, CORAÇÃO]


Não mais, coração,
Atravesses a passadeira.
É muito o trânsito
Quando frívolo,
De sístole em desconcerto
Caminhas.
Segue pelas ruas estreitas
E, sob as sardinheiras,
Confia à arritmia
A surpresa que bate
Cada um dos dias.


Óculos escuros, fígado gordo, & etc, Lisboa, 2013.

segunda-feira, 24 de março de 2014

ANTÓNIO BARAHONA

[O MERGULHADOR TOCOU O FUNDO DO FUNDO]


O mergulhador tocou o fundo do fundo:
sai-lhe sangue dos ouvidos e das narinas;
o coração esmagado sob o pêso da água
fragmenta-se; a corola das algas
coroa o seu martyrio

Oh, a embriaguês da água é maior do que a do vinho!
O afogado, antes de morrer, não se aflige:
contempla o azul esverdeado, a cintilação,
os pormenores da luz quieta no movimento,
as mãos transparentes

O mergulhador continua a descer
para lá do fundo do fundo,
onde não há fundo: só desconhecimento de si próprio
e um mêdo infinito

À medida que vai descendo
o mergulhador sobe no abysmo.


Pátria minha (2.ª edição, integral e definitiva), Averno, Lisboa, 2014.

domingo, 16 de março de 2014

RUI CAEIRO

[O SILÊNCIO DA TRAVESSA]


O silêncio da Travessa pesa às suas putas como a qualquer passante.
Também elas esperam qualquer coisa, nada de especial, uma palavra. Não necessariamente um convite. Não uma palavra de salvação, ou de violência, ou da habitual e falsa cupidez. Uma palavra simples e banal, que não queira dizer nada mas que lembre que todos fazemos parte da mesma rua inóspita, que o mesmo é dizer da mesma terra obscura.


Travessa dos Remolares, Paralelo W, Lisboa, 2013.