domingo, 31 de dezembro de 2017

JORGE ROQUE

BITOQUE COM OVO A CAVALO


A repetição de mais uma notícia frívola na televisão e o eco frívolo da notícia nas conversas à mesa. Vivemos no tempo da nulificação, disse para o ocasional conviva. Antes eram as drogas, o álcool, os êxtases, agora é a nulidade. E na conversa até então fluida, até então frívola, o súbito estorvo, tropeço. O quê, perguntou-me, erguendo os olhos do prato, nas mãos esquerda e direita os talheres suspensos em pausa. Anulação, traduzi, supondo que o problema era discursivo, já não ultrapassar-se, mas suprimir-se. Ah, respondeu-me, com um reconhecimento alheado, e retomou diligente a cirurgia ao bitoque com ovo a cavalo.


Cão Celeste, n.º 11, Lisboa, 2017.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

ALBERTO PIMENTA

SEM TÍTULO


— a vida é um modo de passar o tempo.
— e quais são os outros?
— não há.


Cão Celeste, n.º 11, Lisboa, 2017.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

EMANUEL JORGE BOTELHO

ONZE LINHAS, QUASE NADA


acabei, há pouco, de pensar.
não encontrei, em mim, nada que mereça ter um nome.

ficar entre duas aspas, disse à minha voz,
não me salva do abismo.

não há nada que segure as palavras
da vergonha,
e a queda não tem amparo
quando se cai de punhos lassos.

todos os dias morre um homem que só queria
ter um pouco mais de tempo, digo,
e escrevo a minha culpa dentro das minhas mãos.


Cão Celeste, n.º 11, Lisboa, 2017.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

ANTÓNIO AMARAL TAVARES

[A LOUCURA DAS FORMIGAS]


A loucura das formigas
traz outras incertezas do medo
e da sua estirpe de fantasmas.

O desarrumo é uma nuvem incandescente
onde soa a vozearia escura da cidade
e se fecham os gestos que esbofeteiam o ar
frente à finitude dos espelhos.

Os dedos das formigas tecem
filigranas loucas nos olhos abertos
pela luz e pelo fumo.

Um corpo em saldo
para os comerciantes de gente

os canibais de sempre
que os cravam como borboletas
nas grades das suas próprias prisões.


The book of refugees, org. de Carlos Júlio, Luís Januário e Sofia Lobo, Pescada n.º 5, Coimbra, 2017.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

RUI ÂNGELO ARAÚJO

[LEMBRO-ME DE UMA COISA]

[...]

Lembro-me de uma coisa que aconteceu num dia de nevoeiro, disse eu a Leonardo, mas tenho a certeza de que não é isto que quero recordar ou esquecer em dias assim, embora tenha sido a minha primeira experiência com a morte. A avó de  umas crianças do bairro morreu quando eu estava na casa da sua família por razões que já não lembro. Houve um grito da criada, um tropel de passos no soalho e, não sei quanto tempo depois, um adulto pesaroso, creio que com algumas lágrimas, mandou-nos severamente brincar na rua. As mais velhas das crianças tiveram tempo de saber o que se passara e sentiram um alívio que não podiam compreender ao serem dispensadas de constrangimentos. O quarto da idosa ficava no corredor que dava para a rua e ao passarmos eu pude ver-lhe o rosto, o mesmo rosto de cera, enrugado e impassível, que eu conhecia de outras visitas, soerguido pela mesma almofada. Na rua o nevoeiro imperava e, entranhando-me nele como num sonho, com poucas coisas que observar e rodopiando lentamente no passeio, eu revi repetidamente aquela imagem.

[...]

Hotel do Norte, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2017.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

EDUARDA CHIOTE

ESCULTURA


Prepara apenas o caminho
de ruptura
e não me digas do escuro,
do logro,
não me digas do engano
nunca,
nunca mais me fales assim da tua
própria voz.
O seu espírito
irá cinzelar
a carne,
a aflição das aves — seu longínquo
voo.
Este suspender-se-á
na mudez
de um palhaço,
na alma de um menino
de noite.
E dizendo-lhe é assim mesmo,
nada a fazer — pois mimo apenas,
e em minha
face roída
pela boca,
o sangue
que antecedeu a respiração
dos pássaros escondidos.
Na palavra
que mais não emite
nenhum sopro.


Não me morras, & etc, Lisboa, 2004.

domingo, 8 de outubro de 2017

MANUEL DE FREITAS

BENILDE AO BALCÃO (III)


Um dia, Dona Benilde, vamos
estar todos mortos,
exactamente mortos. O dominó
calar-se-á de vez e a serradura,
essa, já não vai ser precisa
para limpar um vómito menos reticente.

Não é grande nem formosa e grata
a novidade da sentença.
Mas para já estamos vivos,
quase exactamente vivos:
o anão lowryano com a sempiterna
muleta, o velho Porto e os sapatos desiguais
que hão-de-distrair, quem sabe,
o seu olhar frio mais morto do que a morte.

E o espectro de Lowry, já lhe
falei dele. Ao canto do balcão,
embora um rato passe e se perca
no vermelho sujo do chão que nos
protege. Até mais ver, até.

Um dia, Dona Benilde,
ter havido este dia
vai ser apenas um mau poema,
o retrato desfocado de uma cidade
que se dissolve, importando
novas gentes, novos hábitos,
que não nos incluem decerto
— porque os mortos, essa gente exacta,
não sabem falar. Morreram.


Suite de pièces que l'on peut jouer seul [de Game over], Corsário-Satã, São Paulo, 2017.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

EMANUEL JORGE BOTELHO

RUA DO SACO, N.º 15 (II)


o meu vizinho predilecto
morreu na guerra.

ele gostava de mim porque me acenava
quando dizia o meu nome.

no Verão, o meu vizinho passava, todas as manhãs,
perto da minha porta.
ia a caminho do mar.

quando me disseram que ele morrera na guerra
eu ainda não pensava que podia lá morrer.

eu não me recordo do nome do meu vizinho,
e queria tanto dá-lo
à saudade que dele tenho.


Os ossos dentro da cinza, Averno, Lisboa, 2017.

domingo, 27 de agosto de 2017

RICARDO MARQUES

[O AMOR IMAGINÁRIO]


A noite, como o dia
é muito vasta

o sol pode ser
um letreiro de bar

alerta
aleatoriamente
aceso


A noite [variações], Alambique, Lisboa, 2017.

domingo, 13 de agosto de 2017

RUI PIRES CABRAL

EL PRADO


Os quadros são coisas completas
na engrenagem das salas
e nós vamos no rasto que eles deixam.

Comemos uma salada reles no buffet do Prado
e os «novos artistas de Espanha»
fumam-nos o tabaco todo com os cotovelos
fincados no mapa.

A beleza tem peso e consequência, as salas
parecem tão cheias que não sobra no espaço
um lugar para nós.

Velhas como as árvores,
as Meninas.


Passagens: Poesia, artes gráficas [de A super-realidade], org. Joana Matos Frias, Assírio & Alvim, Lisboa, 2016.

domingo, 30 de julho de 2017

RUI NUNES

[LAMPEDUSA]


Não se regressa aos mortos:
eles expulsam-nos de qualquer regresso.
Sôfregos da sua morte, flutuam
com o abandono de detritos:
em volta respira a água.
Expectante.

Barcos por entre
o arquipélago instável dos corpos
perdidos numa névoa que cheira a gasolina:
o som dos motores redesenha
o mapa dos naufrágios,
a geometria dos afogados.

[...]


Lampedusa, Paralelo W, Lisboa, 2017.

domingo, 16 de julho de 2017

JOSÉ MIGUEL SILVA

MÚSICA ANTOLÓGICA & TODOS CONTENTES


Bom é gostar daquilo que os amigos escrevem
e não ter de mentir na volta do correio.
Não há felicidade mais em conta nos tempos
que correm. Somos gratos a quem nos elucida
sobre a queda do cabelo ou a fraqueza da razão,
quem nos lembra que ainda temos tempo
de morrer acompanhados. E, só por esta vez,
esquecemos todo o nojo que sentimos
de nós próprios, escolhemos a camisa mais
lavada, escovamos o sorriso, e recebe-nos a rua
— quem diria! — com um beijo em cada face.


Últimos poemas, Averno, Lisboa, 2017.

sábado, 15 de julho de 2017

NUNES DA ROCHA

[HÁ MUITO TEMPO DA JANELA]


Há muito tempo da janela
A olhar o zodíaco
E o chuvisco sobre barco em doca seca.
Ofereço a Júpiter álcool sem retorno,
A Vénus rugas recém-chegadas
E a Marte tudo o que nunca fiz,
Por preguiça
Ou revolução inacabada.

Com língua balaustrada
Talvez o céu fosse estrada
Ou verso a verso no caminho
Para ti.
Mas queimei todos os livros,
Cobri os cabelos com a cinza
E nunca mais, lepra inútil,
Ceguei pelo feitiço da sibila.


Poemas obsoletos de um bicho imóvel, Averno, Lisboa, 2017.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

MANUEL AFONSO COSTA

O ANTEPASSADO DESCONHECIDO


o entardecer é raso
e tem a nitidez de um perigo
(a mentira entre a sopa e a fruta)
mas quando a névoa
atinge o teu olhar
a palavra que te acode aos lábios
tem a pressa de um augúrio
ele escutava apenas
a melodia das conversas
era um intruso
no coração das trevas
porém o seu rosto
era algumas vezes
um clarão na obscuridade


Memórias da casa da China e de outras visitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2017.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

JOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA

A MINHA TIA


Ficou em coma durante vários meses.
Falar com ela era falar com deus,
sem ficar à espera de resposta,
a acreditar que estava a ouvir.

Quando acordou, desfez-se
em palavras longínquas
que mal tocavam
na pele presente;

só mesmo numas partes
difusas, onde os peixes
não se distinguem da água
nem os mortos dos vivos.

Elogiei-lhe o quarto, na clínica.
Espaçoso, com uma bela vista.
Respondeu: — Se olhares pela janela,
podes ver a tua avó vestida de árvore.

Olhei. E era verdade.
O mar ia batendo o tempo.
Um renque de pinheiros
destacava-se do céu.


Tâmaras, Douda Correria, Lisboa, 2016.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

NUNO MOURA

(3)


dormimos no porão do iceberg
agarrados ao tambor da festa


Clube dos Haxixins, Douda Correria, Lisboa, 2016.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

ARMANDO SILVA CARVALHO

1938-2017



domingo, 28 de maio de 2017

ROSA MARIA MARTELO

[VER PASSAR NAS FOLHAS DAS ÁRVORES]

Ver passar nas folhas das árvores
a cauda aberta dos peixes

no brilho de mica do granito,
a cintilação nocturna das estrelas

nas veias da mão, a ramificação
das pétalas

de rosa
(por exemplo). Porque o mundo copia

desvairadamente as suas cópias de cópias
enquanto inventa as diferenças:

insano mestre de loucos, artesãos,
da sombra esguia do fim da tarde,

multiplicador de inexistências,
mãos zootécnicas refeitas na parede

onde uma asa, uma ave, é (e não é)
a sombra de uma ideia projectada.


Siringe, Averno, Lisboa, 2017.

terça-feira, 23 de maio de 2017

ADÍLIA LOPES

[AS ARANHAS]


As aranhas
que vejo cá em casa
têm 8 patas

A algumas
falta uma pata
devem ter sofrido
um desastre


Bandolim, Assírio & Alvim, Lisboa, 2016.

domingo, 21 de maio de 2017

JOÃO ALMEIDA

NÃO HÁ RAZÕES


Casal um à mesa não importa o dia
Não importa a hora

Falam uma língua muda
Que sai das coisas
E as leva sem vestígio

Ela faz pequenos barcos
Com o papel da conta do jantar
Ele queria ir ao fundo do céu
Da boca se pudesse

E eu que como de tudo
Não entendo tal noite.


Hotel Zurique, Averno, Lisboa, 2017.

sábado, 29 de abril de 2017

ANTÓNIO BARAHONA

SÓ O SOM POR SI SÓ


Só o som por si só
fechou (em aberto) um poema
muito perto de Deus,
na ciência da ignorância
e ao relento.

Sacudo o pó da cabaia:
a viagem conti-
nua
sem distância
através do silêncio.


Só o som por si só, Alambique, Lisboa, 2017.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

MANUEL DE FREITAS

ESTUDOS CAMONIANOS


Estavas linda, Inês, e Camões
decerto não se importará
se eu disser que tinhas
posta no lugar a carne inteira
do meu futuro desassossego.

Aos poucos vai o corpo apodrecendo,
gentil da terra furor de que esquecemos
notícia e lastro, entretidos a morrer
por novas avenidas velhas
que em breve nos não verão mais,
apartados pela vidinha.

Mas estavas tu linda, Inês,
alheia ou talvez nem tanto
ao cego conhecido engano
que por vezes se dissipa
antes mesmo de existir.


Game over (2.ª edição, revista), Alambique, Lisboa, 2017.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

A. M. PIRES CABRAL

[DIRIJO-ME A TI, GABRIEL]


Dirijo-me a ti, Gabriel, sem sequer saber se ainda vives. Mas isso é irrelevante. Porque o que eu realmente pretendo neste texto não é fingir que dialogo contigo, mas sim convocar a memória daquele que foi sem dúvida o maior e mais firme amigo que alguma vez tive: tu.

Lembras-te de como éramos aos quinze anos? De como éramos aos vinte e dois? Aos quarenta?

Lembras?

E não te dá vontade de chorar?

[...]


Singularidades, Cotovia, Lisboa, 2017.

quarta-feira, 22 de março de 2017

INÊS LOURENÇO

MORDER A LÍNGUA


A ponta do cigarro apaga-se
como o ruído dum insecto
a agonizar na água. A
noite arrefeceu apesar de ser Julho
porque o Verão a norte nunca
se despede da bruma. É tarde
e procuro um verso
que morda a própria língua.


O jogo das comparações, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2016.

sexta-feira, 17 de março de 2017

CATARINA NUNES DE ALMEIDA

O AVÔ DISSE AO GATO


O poema não é uma asa-delta com um poema
não se levanta voo com um poema somos bem capazes
de nem ir a lado nenhum.

O poema é apenas uma forma delicada
de um homem se despenhar
sobre os destroços de um outro homem.


O dom da palavra  (com desenhos de João Concha), não (edições), Lisboa, 2016.

domingo, 5 de março de 2017

JOSÉ MIGUEL SILVA

OS DADOS ESTÃO LANÇADOS — JEAN-PAUL SARTRE


Todos temos um primeiro livro, uma súbita
roldana, fornecida por acasos que desmentem
a balela do destino. Nada estava escrito
nessa noite de Dezembro, quando o Jaime
me emprestou, por entre brados de cassetes,
o rastilho dum rizoma movediço, que depressa
levaria a um sorteio de paixões encadeadas,
de Pessoa a Franz Kafka, Zaratustra, Baudelaire
e mais além, o largo mundo do enleio literário.

Cedo me fiz sócio, claro está, da biblioteca
e fez-se curta de repente a semanada, detestável
a conversa dos amigos que não liam, pavorosa
a centopeia do dever. Dum momento para o outro,
estava só e mais calado, mais inculto do que nunca.
Cada noite adiantava dez minutos o relógio
da insónia, e de manhã tinha um poema formidável
para o cesto dos papéis. Para mim, foi assim
que começou. Mais adiante explicarei como acabou.


Cão Celeste, n.º 10, Lisboa, 2016.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

PEDRO MEXIA

O CÃO DE GOYA


O cão de Goya, quem o abandonou?
Que naufrágio, cave, urbe sem gente?
Quem o pôs de cabeça humana
suplicante, que deus dos cães
o deixou assim, igual a todos?
Que bicho é este, sozinho com a impossibilidade,
um perigo que cresce sem salvação,
o grande indistinto vazio que faz medo?


Eufeme, n.º 1, edição de Sérgio Ninguém, s. l., 2016.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

EMANUEL JORGE BOTELHO

ANOTAÇÕES DE VLADIMIR ENQUANTO ESTRAGON DORMIA

para Samuel Beckett

ando à espera que me digam de que lado
virá o último pássaro a que darei sustento.

a minha borboleta já cá está há muito tempo.
chegou com o vento da noite
e trouxe-me um nome de árvore.

esperar não é pedir muito ,
nem obriga mão alguma
a dar lisura de afago
ao frio que rasga a face.

se alguém souber cantar, que não se acanhe.
eu gostava de ouvir, em voz, o que só o silêncio conhece.

esperar não é pedir muito, eu já o disse:
a solidão contenta-se com pão e água.


Cão Celeste, n.º 10, Lisboa, 2016.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

NUNO JÚDICE

NÚPCIAS


Uma inquietação de pólen suspende
o voo da abelha. Capturo-a com
os dedos da alma, e ouço-a zumbir
na minha cabeça, num limiar de
memórias que fazem parte de um verão
carregado de amêndoas e alfarroba.

Veio depois o zangão com o seu canto
áspero; e entreguei-lhe esse corpo
deitado na minha mão, queimado
pelo sol do meio-dia. Assim, entre
os declives da terra e os corais
do olhar, esqueci um presságio de azul.

Ter-me-iam confundido com um antigo
profeta, desses que pedem a esmola
de uma certeza em cada canto da
vida; ou pedir-me-iam o nome
de cada um deles para completar
os livros de frases inaudíveis como

as vozes apagadas pelo vento, como
esse murmúrio nascido num eco
de travesseiro, como o desejo gritado
no instante do naufrágio: e
em vão lhes confessei ter perdido
todos os sonhos, e nada ter para lhes dar.

Por vezes, digo, este pólen branco
que sobra nas corolas secas do inverno
serve de alimento aos famintos de amor:
e vejo-os partirem pelos campos, em busca
de imagens, deixando atrás deles
uma penumbra carregada de sentimentos.


Eufeme, n.º 1, edição de Sérgio Ninguém, s. l., 2016.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

ISABEL CRISTINA PIRES

UM POEMA ERÓTICO


Alguém me mandou escrever
um poema erótico. Alguém disse:
o sal da vida! A labareda! Escreve.
Fala-me do sexo a contra-luz, ou, se quiseres,
da macieza da boca. Da adivinha
de um dedo, das perguntas
respiradas que depois caem na pele.
Faz com que dois corpos colidam,
que os seios baloicem, que bravos
gemidos sejam o berço de outros
uivos, tudo isto para que a alma
saiba o que lá vem e consinta no ocaso.
Não fales do muco que brota cegamente,
de músculos vulcânicos, da velha cavalgada;
entrámos num rasgão do universo!
O erotismo é isso, disse o mandante do poema:
uns olhos dilatados de gato à procura da luz.


Eufeme, n.º 1, edição de Sérgio Ninguém, s. l., 2016.