quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

JOÃO PEDRO MÉSSEDER

DELFOS (II)


A arte
da memória
se compõe

do canto
obstinado
das cigarras

do prumo
branco
das colinas

do fruto
ainda verde
do cipreste


De um Caderno Grego, Edições Plenilúnio, Porto, 2003.

domingo, 27 de dezembro de 2009

ROSA MARIA MARTELO

SOMBRAS


A noite não é o avesso do dia, sequer o seu contrário – de noite os motores do dia trabalham ainda, desengatados, um pouco como bate o coração de quem dorme. Roldanas lentas movem-se fora dos eixos do sentido, trazem para dentro dos quartos a oscilação das sombras, o vento nas árvores, ruídos ao longe. O ar enegrece contra os muros, destila uma liga muito ténue, reúne as peças soltas. Até de olhos fechados se pressente o brilho das coisas quietas, as idas e vindas, os êmbolos, a inquieta vibração de estarem vivas.


A porta de Duchamp, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

RUI MIGUEL RIBEIRO

CORAÇÃO DE VIDRO


Faço o meu trabalho de desocupação.
De vazios que não me exigem manhãs,
nem horários, para ficarem marcados
em calendários prescritos: valetas
de dias sobre datas passadas.

A minha tristeza não tem trocos
nem desenganos. Nem com eles
o direito de encontrar, ao tacto
da superfície de alcatrão, aquilo
com que os meus membros silenciosos

respondem – a chamada aos bolsos
de pedras partidas, que lanço
contra um coração de vidro.


Criatura, n.º 4, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

domingo, 20 de dezembro de 2009

DAVID TELES PEREIRA

RUA ADAMCZEWSKI


Na distante memória, a estreita rua Adamczewski
contorna o olhar até se abrir em direcção ao cemitério
que fica no cimo da colina, onde as crianças brincam
aos castelos numa árvore sem pássaros.

Aqui a sombra da morte é tão presente quanto a do fim de tarde;
felizmente ainda mal passámos do meio-dia e os velhos
bebem aguardente de ervas no café à espera de quase tudo,
menos do grito de uma flor que aguarda um destino.

Mas eis que ele soa e o nosso tempo altera-se,
como se de ouvido encostado ao chão pudéssemos
associar o triunfo das formigas ao dos nossos antepassados
a caminhar lado a lado pela Rua Adamczewski acima
em direcção ao cemitério, de braços dados, enquanto cantam
Se não são os mortos que nos guardam,
porque é que os deitamos aqui em cima?


Criatura, n.º 4, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

LYRICA




domingo, 13 de dezembro de 2009

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

XIII


Tenho para mim neste derrotado começo de século
neste farrapo de país em que a própria língua virá em
breve a ser idioma secreto
e a quem ninguém chamará pátria nem tão-pouco
nação, apesar da vigilância sobre a nossa existência
ser matéria autocrática e clerical,

tenho para mim que nesta geografia
a casa rural é a expressão mais pura que sobrevive,
qualquer coisa ao alcance
entre o castelo e a igreja, entre a cruz e o adro,
ornamento que sustenta o carácter da arte e da paisagem.
Expressão do movimento, de uma cor.

Ao fim do pátio, onde a alma da casa termina, está
uma taça de granito. Bebedouro de pássaros nos meses
quentes, cobre-se de medronhos
pelos cálidos dias outonais do verão de São Martinho.
Em oferta, do áspero amarelo ao quente laranja,
no contraste da pedra o meio dia intensifica de brilho

cambiantes vermelhos – rosa vivíssimo e sangue
esmagado – o calor abre em ouro o corpo do fruto,
insectos despertam de um íntimo, longínquo mundo de
treva, como se subissem da mais antiga morte, da mais profunda vida.


Mãe-do-fogo, Relógio d'Água, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

LUÍS FILIPE CASTRO MENDES

A ILHA DOS MORTOS REVISITADA


"Um sonho acordado" foi o que a compradora
pediu ao pintor.

E o que é mais a morte do que um sonho acordado,
de que deslizam as roupas, ao se entrever na água
a sombra do que sequer chegámos a ser?

Muitas vezes me perguntei
onde vim encontrar esta ilha.
Sei-o agora, mas é já muito tarde para partilhar
este saber que nunca mais será um privilégio.
Por isso olho esta figura de branco, eternamente de costas para nós,
ela olha de frente a água e a morte,
e pergunto-me se o caixão não está vazio.



Relâmpago, n.º 23, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2008.

domingo, 6 de dezembro de 2009

FERNANDO GUIMARÃES

A ÚLTIMA PIETÀ DE MIGUEL ÂNGELO


Desfalecido, o corpo que se encontra
com outro, quando espera aquele afago
há muito procurado e que se via
surgir de um novo gesto, ao receber

o que equivale à forma ali suspensa
numa curva serena de piedade
materna, agora firme porque o caule
de uma planta existe para erguer

o perfil, a medida dos seus rostos
que vemos junto às pétalas trazidas
só pelo sofrimento. Ali ficaram

mais juntos, quase ocultos, e detinham
a fuga dos seus corpos, nesta ausência
que foi nossa também. Do outro lado.


Relâmpago, n.º 23, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2008.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

RUI ALMEIDA

[O HOMEM QUE SE OLHA AO ESPELHO SABE]


O homem que se olha ao espelho sabe
Que vai morrer. Não sabe quando ou como,
Mas reconhece a finitude da vida
– Da sua vida, de cada vida.

Contempla o processo biológico
E admira-se perante o zelo do tempo
A modelar-lhe a velhice no rosto.


Lábio Cortado, Livrododia, Torres Vedras, 2009.

domingo, 29 de novembro de 2009

RENATA CORREIA BOTELHO

[JÁ NINGUÉM NOS TOCA À PORTA]


já ninguém nos toca à porta
a vender cerejas.

devíamos talvez lembrar
à terra o nosso nome

plantar sílabas frescas
que nos matem a sede

ter um pingo de esperança
na morte depois da vida.


Um circo no nevoeiro, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA

MARTÍRIO DE SÃO SEBASTIÃO


No canto esquerdo superior está suspenso
um anjo descido do céu para coroar
de glória o corpo martirizado do jovem
capitão da guarda pretoriana ao tempo
do imperador Diocleciano e apóstolo
da fé cristã fervoroso como se deixa
pela expressão facial adivinhar no quadro
feito por encomenda dos piedosos membros
da sacra confraria de São Sebastião
no ano de mil quinhentos e vinte e cinco
e comprado pelo grão-duque da Toscânia
muito mais tarde nos finais de Setecentos
para continuar na cidade de Florença
onde Sodoma, o pintor, o executou.


El Arte de la Pobreza: Diez Poetas Portugueses Contemporáneos (de O Rei de Sodoma e Algumas Palavras em sua Homenagem), org. José Ángel Cilleruelo, CEDMA, Málaga, 2007.

domingo, 22 de novembro de 2009

CARLOS POÇAS FALCÃO

AS MATÉRIAS


Pescadores à linha. Rapazes sobre as ondas
incessantes. Jogos atléticos nas praias.
O meu cansaço é grande, estou de um lado
onde o mundo quase pára, muito atento
à posição do sol: não quero que a sombra
se transforme em erro. Por esta humanidade
passa o vento, traz-me as alegrias saturninas
da grande distracção. Eu sento-me nas rochas
entre as madeiras velhas, as matérias.
Não há tristeza nisto? Como pode haver?
É um dia a descoberto para as maravilhas:
pranchas sobre as ondas, algas no anzol.


El Arte de la Pobreza: Diez Poetas Portugueses Contemporáneos (de Movimento e Repouso), org. José Ángel Cilleruelo, CEDMA, Málaga, 2007.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

FERNANDO GUERREIRO

CONVERSA ENTRE CONTEMPORÂNEOS / 9


As conversas entre contemporâneos assemelham-se
a encontros de náufragos: passam-se sempre debaixo
de água à espera da dor que permita que as palavras
ascendam à superfície. E no entanto mesmo os distraídos
reparam que uma feroz natureza cresce das bordas
da linguagem, exalando aromas que cada vez é
mais difícil interpretar à luz da literatura.
Haverá ainda alguém interessado em os respirar?
Também nós, relutantes jardineiros,
não nos aproximamos dos canteiros
e as flores que cultivamos,
colhemo-las antes de tempo,
só para, com o perfume,
não ter de aspirar a loucura.


El Arte de la Pobreza: Diez Poetas Portugueses Contemporáneos (de Grotesco), org. José Ángel Cilleruelo, CEDMA, Málaga, 2007.

domingo, 15 de novembro de 2009

RUI PIRES CABRAL

VILA REAL


para a Daniela e a Viviana

Estamos sentados entre o xisto e a caruma
no chão da montanha. Os choupos são uma impressão
riscada no cenário à nossa frente, mas nós temos as mãos ocupadas
com outros pensamentos. Às vezes era doloroso viver atrás
das montanhas, pressentíamos a distância do mundo como uma faca
e usávamos o mesmo gume para dividir entre nós
as enormes tardes de domingo.

Nós os três contra o ar duro do Marão, os braços em torno
dos joelhos. Quase uma imagem para a música das cassetes
que eu levava para todo o lado (alguma desenquadrada peça de Satie
entre Polly Jean e Tom Waits a uivar como um cão). Tínhamos vindo
à procura da neve debaixo dos troncos, atirámos pequenas pedras
às fundações do vale. E como parece branco e nítido o inverno.



Poemas de Rui Pires Cabral [de Música antológica & onze cidades], Oficina Raquel, Rio de Janeiro, 2007.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

JOSÉ AMARO DIONÍSIO

FINAL


Sente o coração bater contra o rio onde o rio já não existe. Que pode fazer um homem que desloca a fronteira nos seus passos? São sons que provocam corredores sem saída, e batem no ar, e roem, e voltam para trás, e recomeçam, e por cima há um odor a cadáver no céu em ruínas. Sim, nem de outrora um pouco de vida. É um esplendor de luto, ponto final. E isso paga-se todos os dias, mesmo quando o dia todo se gasta a fugir disso. No caminho taberna a taberna há sempre uma toalha ferida pelo exílio, e a proximidade das vozes só serve para esconder a manhã inútil. Quanto à literatura, francamente, o cheiro da montra não vale esta bifana em Vendas Novas. Acham pouco? Peçam duas.


Nada Serve, Averno, Lisboa, 2008.

domingo, 8 de novembro de 2009

MANUEL DE FREITAS

2009, PINA BAUSCH


«As eleições de domingo no Benfica
estão comprometidas; morreu
Pina Bausch, a coreógrafa alemã.» – foi assim,
de rajada, numa frase única a colar-se
ao vidro do táxi, que fiquei a saber da sua morte.

E tive pena, recordei enquanto não pedia troco
a tristeza feliz de a ver dançar Café Müller
há um ano, no tempo em que estávamos vivos.

Mas já não tenho poemas.
Nem mesmo para si, Pina Bausch.


Jukebox 1 & 2, Teatro de Vila Real, 2009.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

MANUEL ANTÓNIO PINA

TEORIA DAS CORDAS


Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste na alma),
no fundo da alma, e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música física
que só a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio,
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente ciente
de si, não haver resposta
nem segredo.


Atropelamento e Fuga, Asa, Porto, 2001.

domingo, 1 de novembro de 2009

SILVINA RODRIGUES LOPES

[POR MUITO QUE A TÉCNICA]


Por muito que a técnica seja importante para a construção de um poema, nunca o domina ao ponto de o integrar no modo de produção dos objectos mercantis.


"A Anomalia Poética", Telhados de Vidro, n.º 1, Averno, Lisboa, 2003.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

RUI MIGUEL RIBEIRO

X - O CORAÇÃO


O coração assemelha-se
a quanto posso perder
– tudo – junto a ti.
Sob o sinal de anos pretéritos
a sós com o meu olhar
a colecção das nossas perdas
ganha um involuntário valor
sobre estes dias.

Adere a cada hora
um significado como uma forma
de gravidade sobre o tempo.

Hoje sei como se perde
a noite e nela a vida; como se
decompõe entre a luz e a sombra
onde um corpo espera.

Não é a ausência, tão-só o amor
quem faz esta vigília, esse excesso
que é também abreviatura
e aqui termina.


XX Dias, Averno, Lisboa, 2009.

domingo, 25 de outubro de 2009

RUI CAEIRO

[AQUI NA PRAIA DA TORRE PERTO DO LUGAR ONDE]


Aqui na Praia da Torre perto do lugar onde
mataram Gomes Freire de Andrade
aqui onde o Tejo por fim se rende e
se faz mar curvado sobre a areia
apanhando conchinhas e distraído
saboreando palavras lavadas e re
lavadas pela água das marés tais como
praia luz água nitidez búzio manhã
Deus ou Sophia de Mello Breyner Andresen


Olhar o nada, ver a Deus, Averno, Lisboa, 2003.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

VITOR SILVA TAVARES

[TENHO PARA MIM]


Tenho para mim que poeta não é apenas aquele que escreve poemas e veste farda de serviço – isto para não dizer que ele há por aí muito boa gente (força de expressão) que redige o que se convencionou chamar de "poesia" e está a anos-luz de saber habitar poeticamente o dia, de vivenciar o magma poético (seus infernos reais, seus paraísos não tanto) sem a bengala do escapismo literário e seus adornos embusteiros.


Tanto Fogo e Tanto Frio: o Último Sonho de Olímpio (com Alberto Pimenta), & etc, Lisboa, 2008.

domingo, 18 de outubro de 2009

VÍTOR NOGUEIRA

GELO


Agora é apenas um café com paredes adornadas,
imagens retratando destemidos ancestrais.
O tempo foi passando, não foi? Um acidente
em câmara lenta a uma escala cataclísmica.

Grande parte daquilo que fazemos é construir
memória, uma promessa frágil ao futuro.
E pensar que na vida acumulamos tanta coisa,
sobretudo se por hábito não deitamos nada fora.

Mas ninguém pode travar a grande máquina.
Diz-se que a viagem conta mais do que o destino.
Perscruto as águas envolventes, em busca de
sombras, enquanto o mar revolto bate no casco.


Mar largo, & etc, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA

VIA DI CITTÁ


Nas cidades educadas, como Siena,
as casas fazem os homens e não
os homens as casas; as ruas param
para os deixar passar e eles passam,

como lhes cumpre, sem protestos
de pilão e camartelo, agradecidos,
deixando atrás de si o palco limpo
para a gala dos vindouros e seus actos.

Suas sombras acomodam-se à virtude
de passar sem aparato. Não se toldam
com licores de petulante afirmação,
não arruínam, por despeito, a perfeição.

Limitam-se a passar, a transferir
duma gaveta para outra as escrituras,
o afecto dos contratos. E nisso mostram
tudo o que, na vida, é possível aprender.


Telhados de Vidro, n.º 11, Averno, Lisboa, 2008.

domingo, 11 de outubro de 2009

MIGUEL MARTINS

[SE TIVESSE CARTA]


Se tivesse carta, faria sentido comprar um automóvel; poderia, então, meter o sofrimento na mala e abandoná-lo num outeiro.


Cirrose, Fenda, Lisboa, 2003.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

JOSÉ RICARDO NUNES

ARREDORES DE PORTALEGRE


Um dia o tempo
será um único
dia. Terei as veias
fechadas, mar
de pó afogando
raízes. E a luz
do ocaso não entrará
no verde e no granito
desta imagem
a que me furtei,

arredores de Portalegre.


Apócrifo, Deriva, Porto, 2007.

domingo, 4 de outubro de 2009

HENRIQUE FIALHO

SUGESTÃO


mata-me o ego
e recordarei contigo
a memória de havermos sido
um vácuo sem fundo
numa vida sem fim


Entre o Dia e a Noite Há Sempre um Sol que se Põe, edição do Autor, Rio Maior, 2000.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

MANUEL ANTÓNIO PINA

NUMA ESTAÇÃO DE METRO


A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre os outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.


Pathos: Pequena Antologia Quase Inédita de Poesia Contemporânea Portuguesa (AA. VV.), Gailivro, Porto, 2006.

domingo, 27 de setembro de 2009

GASTÃO CRUZ

GRAVURA


Ourives-gravador era o ofício
do meu avô paterno: sobre mesas
dispersos utensílios buris limas
por entre chapas e, há muito, objectos

acumulados; lembro-o curvado
com a luneta, fixamente olhando
a dura mão que no metal gravava
por encomenda nomes: desenhava com

força as linhas do seu significado
como se para alguma eternidade
ilusória as gravasse, assim o poeta

com o buril inscreve na deserta
chapa do mundo não interpretado
o sentido precário de o olhar


A Moeda do Tempo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

TEMPO GIUSTO


Abriu o armário da loiça. Porta de pinho presa de
humidade. As suas mãos
trouxeram, uma a uma, as várias peças de
um fabulário de faiança, azul sobre puríssimo branco.

Serviu-me nessa tarde o último chá,
caiu de um rude bule
vidrado
para a chávena que trazia as armas de um dos avós;

um dos seus dedos acariciava, sentia a temperatura do
chá, enquanto passava, ao de leve, sobre a ferida
heráldica carregada de um S maiúsculo, honorada com

o arminho de um fugaz pariato.
«Coisas da pequena pátria.» E sorria de um modo
sonhador; «por cinquenta cêntimos o centro do homem funciona».


Invisíveis correntes, Relógio d'Água, Lisboa, 2004.

domingo, 20 de setembro de 2009

RUI PIRES CABRAL

COMMON NIGHTHAWK


Não és da terra dos muitos
que acordam de manhã cedo
para apanhar os transportes
e quando descem a rua

já têm, aos vinte e picos,
toda a vida pelas costas –
és de uma noite de Julho
que começa sem lembrança

e termina ao outro dia
com um sorriso moído
e um número de telefone
condenado a extraviar-se.

Quanto ao mais, posso dizer
que o pouco que sei de ti
não abona em meu favor
nem aproveita ao poema.


A pocket guide to birds, A Gaveta do Meio, Lisboa, 2009, fora do mercado.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

INÊS LOURENÇO

DESALINHO


Nenhum destes poemas
fará parte de um livro
adoptado nas escolas. Há
muito tempo que não escrevo
azul mar e barcos ou outras
palavras para alívio de almas
homéricas.

Prefiro – ou preferem-me
aquelas como: desalinho
alinhavo ou logro ou outra
qualquer. Nunca o arremedo
de uma palavra única esgota
o muito ou nenhum sentido
de um verso.


Disfunção Lírica, & etc, Lisboa, 2007.

domingo, 13 de setembro de 2009

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

BEATITUDE


Assim, bento de ignorância
e desleixo, deslizo
pelo cano dos dias
– projectos? – todos grandes
e muitos,
certo de que o tempo
os vai gastando,
ao ritmo a que se amontoam
as beatas no cinzeiro
e com o mesmo cheiro.


Nada Tão Importante, Que Não Possa Ser Dito, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

MANUEL DE FREITAS

PRAÇA DAS FLORES N.º 5


Tarde chuvosa de Verão a redimir
o luminoso e opressivo cansaço de Lisboa.
Abrigo-me numa taberna agora sombria
devido ao cinzento súbito do céu.

Aqui o tempo é uma ferida menor, vejo-o
pelas tardes sempre iguais destes homens
a jogar dominó, a zaragatear por vezes
acerca de importantes questões,
metafísicas inerentes a este jogo.

Que calma, esta do vencido
pagando cervejas aos vencedores,
o vinho tépido servido por alguém
que sem pressas nem angústias
envelhece por detrás do balcão.

É uma calma suave e perturbante, talvez
como a chuva lá fora, e encanta-me
esta singeleza profunda, a sedução de
exauridos olhares que a vinho sobrevivem.

Dir-se-ia ter nos meus ombros
toda a tristeza do mundo, ainda que
o mundo pouco valha ao pé desta taberna
na tarde molhada da cidade. E contudo
sinto-me estranho como em qualquer lugar,
espião não da casa do amor mas na da
morte quotidianamente vivida.

A melancolia pode às vezes ser isto,
um modo de sobreviver ao vazio, o comovido
jeito de pôr a mão sobre o mármore da mesa
e pedir outro martini, fresco
se faz favor.


Todos contentes e eu também, Campo das Letras, Porto, 2000.

domingo, 6 de setembro de 2009

LYRICA


quarta-feira, 2 de setembro de 2009

ANA HATHERLY

[PENSAR]


Pensar
é como tactear uma sombra
entrar de rastos
numa profusão de escuros


Fibrilações, Quimera, Lisboa, 2005.

domingo, 30 de agosto de 2009

PEDRO MEXIA

OS DINHEIROS


Judas não se enforcou na figueira.
A figueira é uma árvore benigna.
Judas enforcou-se
nos trinta dinheiros.


Senhor Fantasma, Oceanos, Lisboa, 2007.

domingo, 23 de agosto de 2009

M. PARISSY

O TEU FUMO

o meu retrato do mizé

amar todo o amor impossível
foi o caminho do teu animal
envelhecido e estropiado

guardaste retratos de tempestade
levaste universos inteiros
no bolso mais pequeno da tua mochila
execraste promontórios

o farol do teu sonho
nunca te deu sinais de liberdade

respiram por ti as tintas
cores de fantasmas exibindo
esperma cornos e ruas estreitas
poetas que perseguem visões sulfurosas
o imaturo rosto do teu fumo


Cafurnas, edição do Autor, Nazaré, 2002.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

RENATA CORREIA BOTELHO

DEUS NOS LÍRIOS

para a minha mãe

sinto deus, todas as noites, nos lírios
de Monet. olham para mim,
por esta sombra incerta que morre
aos poucos comigo, cobrem
de seiva viva a escuridão da casa
e afastam os demónios
que se escondem nas frestas do sono.

pela manhã, junto as pétalas tenras
caídas no lençol, e rezo baixinho,
com os pardais, um verso branco.


Telhados de Vidro, n.º 12, Averno, Lisboa, 2009.

domingo, 16 de agosto de 2009

MIGUEL-MANSO

WIM MERTENS
Stratégie de la Rupture


o Pragal (e evitámos sempre
peregrinações que fossem para lá
da praia mais a sul da Caparica) era
uma manhã muito branca

vindos de Lisboa e da Noite
ainda os olhos ruminavam os reflexos do rio
que havia maquinado beleza e cegueira
dentro do comboio da ponte e de nós

a sala de desenho
– com a palavra Deleuze a giz no quadro negro
seguida de mais uma daquelas citações bastante
herméticas e, diga-se, cheia de erros ortográficos –
era tão branca como a manhã do Pragal

alguns de nós eram os menos talentosos
artistas do Reino

eu, por exemplo, que preferia mil vezes
o almoço na cantina, a comer o coração da mãe
para entender a linguagem dos pássaros
e apreciava a chegada do bom tempo
cultivando a preguiça nos jardins

a minha produção, é verdade, caminhava já
para um lugar etéreo, ténue, um desses lugares
que podemos encontrar apenas no Dicionário de
lugares imaginários (nem deve ter sequer entrada)
limitava-me a marcar em algumas folhas
uns insuspeitos carimbos
que comprara

em lugar das académicas vaias
havia para nós, Joana, músicas


Telhados de Vidro, n.º 12, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

ANTÓNIO BARAHONA

ALFARRABISTA


Hoje comprei um livro de Raul de Carvalho
por um euro, o que considero um escândalo!
Os poetas, regra geral, sempre foram pobres,
mas a sua poesia vale muito mais do que
o peso de mil resmas de rouxinol em oiro.
Isto, evidentemente, pouca gente sabe.
Se muita gente soubesse
os poetas seriam todos ricos.


Telhados de Vidro, n.º 12, Averno, Lisboa, 2009.

domingo, 9 de agosto de 2009

MANUEL FERNANDO GONÇALVES

FIM DO FIM


Fim de um ciclo.
Ainda ontem
passeavas na Cedofeita, ao pé
do futuro e da turbulência.
Hoje falas com se, ao telefone,
fosse outra vez a mesma voz
e a ausência se resolvesse
com o breve, nervoso gargalhar,
o disfarce da respiração suspensa,
o rubor de seres outra pessoa.
A memória é uma bela plasticina!


Fechamos a Alma, ao Fim da Tarde, com Estrondo e Animação, & etc, Lisboa, 2007.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

SAUDADES DO QUE NÃO FUI

Para Manuel de Freitas

Saudades da boémia que não sei:
O excesso de bebida. O charro.
(Eu sempre fui respeitador da lei,
Mas de barro.)

Saudades do balcão com a amizade
E o copo de cerveja.
(À noite, despe-se a cidade:
Único corpo nu que me deseja.)

Saudades do carinho
No ombro, na coxa, no cabelo.
(A mão da morte entorna o vinho
À sede de bebê-lo.)

Saudades desse alguém
Que não sei onde mora.
(E não sei de onde vem
Quando demora.)

Saudades do amor
Que nunca foi o meu.
(E de que sou acusador
E réu.)

Saudades a exigir ao velho
A vertigem da fuga.
(Mas não se pode destruir, no espelho,
A ruga.)

Restos de Quase Nada e Outras Poesias, Averno, Lisboa, 2006.

domingo, 2 de agosto de 2009

A. M. PIRES CABRAL

CÃO MORTO


Fomos contemporâneos
este cão e eu

e eu sobrevivi-lhe

e isto é tremendo.


A Perspectiva da Morte (de Trirreme), org. Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

[HOJE QUE ME SINTO]


hoje que me sinto
perfeitamente morto,
seria o bom momento de romper
a membrana celeste, implacável de azul,
sair, independente, para o lugar de pensamentos
lúcidos, quase reais! mas

fico preso à gangrena, o precioso
lugar dos músculos na carne,
e a memória do prazer mistura-se ao redondo
fio do horizonte;
não estou, afinal, senão vazio de todos os corpos,
apenas alheado das maquinações e dos

encontros. Deixo ficar a paisagem como está,
quando não olho é que as árvores se iluminam por dentro.


A Perspectiva da Morte (de As Moradas 1 a 3), org. Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.

domingo, 26 de julho de 2009

ARMANDO SILVA CARVALHO

O FRIO


Tocar com a língua
na cúpula do ar.

Acomodar os víveres
movimentar o vento.

Fazer deste poema
um frigorífico.

Nas prateleiras ácidas
o silêncio (duplo) dos peixes;
o choro terno e tenro
da hortaliça.

Tocar com as palavras
na cápsula do mar.

Incomodar os vivos.
Mexer na carne com dedos
subversivos.

Impor aos homens
esta abundância fria
colhida nos catálogos.

A elegância
dos ovos
em repouso.

Um mulher serena sonha
com o frio; corre-lhe
pelo corpo o leite desnatado
e fica nos anúncios
pensativa.

No íntimo do corpo
há fendas numeradas
onde o fresco se atreve
a conservar os nervos.

Está na hora
de refrescar a boca.

Donas de casa
e pensadores diários
eis aqui uma demonstração
gratuita do frio.


A Perspectiva da Morte [de O Comércio dos Nervos], org. Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

NUNO JÚDICE

A VARANDA DE JULIETA


Uma vez, entrei em verona para não entrar
em veneza. Entre o vê de verona e o vê
de veneza optei por ver verona. Gostei da
coincidência das consoantes na janela
de julieta; e sei que em veneza não ouviria
o vento da vingança, nem provaria o veneno
de uma volúpia que só em verona se
desvanece com a vida. Não há canais em
verona, como em veneza; nem há janelas
em veneza, como em verona; mas Julieta
espreita a rua, da janela que é sua, e se
ninguém diz a senha que só ela sabe, agita
o lenço molhado pelas lágrimas que as
nuvens bebem, levando-as de verona até
veneza, onde a chuva as deita nos canais.


Pedro, Lembrando Inês, Dom Quixote, Lisboa, 2001.

domingo, 19 de julho de 2009

CARLOS BESSA

[COM UMA DISCUSSÃO ENSAIAR A MORTE]


Com uma discussão ensaiar a morte
Ou requerer a pose, um reinado. Sim
Agarras-te aos encontros, à amizade
Sobretudo a essa civilização do bom dia
Boa tarde. Mil modos de laçar a gravata
Cortar as unhas ou cruzar os braços
Para que do desejo não transpareça
Senão uma pequena falta, facilmente desculpável.
Mas a sociologia, como a psicologia, meu caro
Há muito te trazem no catálogo.


Lançam-se os Músculos em Brutal Oficina, & etc, Lisboa, 2000.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

AMADEU BAPTISTA

[UMA DOENÇA ESMAGADORA, COMO A QUEDA]


uma doença esmagadora, como a queda
de um raio. no reflexo infinito
da infância recebes a notícia
de que alguém que conheceste

acaba de morrer. sentes, no início,
uma tontura imensa, a sala a andar
à roda, o corpo a implodir,
sob as meninges

um som a ecoar. depois, pouco depois,
vais-te acalmando, e pensas que, afinal,
o mal não é a morte, mas sentir

a pura perda em tudo,
a lenta sedição do esquecimento.
uma doença sempre inevitável.


Negrume, & etc, Lisboa, 2006.

domingo, 12 de julho de 2009

GIL DE CARVALHO

À SAÍDA DO DELTA


O antebraço dela
Vai na curva menor
Fechar-se no dele.
À saída do delta.

Agarra-lhe o pulso.
Mal se tocam, na rua
Separados talvez por
Uma geração ou duas.


De Quatro e Cinco, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

MANUEL DE FREITAS

REBECA


Já não vai buscar a bola,
defendê-la entre o cetim dos dentes
ou fugir como quem procura,
enquanto me obrigava
à altura baixa que deixou de ter,
na alcatifa de que foi princesa
e eu agradecido súbdito.

Já não – sempre já não –
os dias que quase vivemos,
prometidos à extinção, avessos
à rima inútil de um sorriso.
Tenho os dedos secos, sossegado
o colo onde depunha sem favor a cauda.
Yorkshire Terrier, seis anos, morta.

Nunca a incomodou que
eu cheirasse – e muito – a gato.
Seguia a bola, indiferente
ao pavor de haver mundo, corpos
inertes, cadáveres que gostaram dela.

E de quem gostou, pois um animal
não mente: existe como não sabemos,
na mais curta distância, numa rendida
proximidade que subitamente termina.

Foste poupada ao cálculo, à usura
– mas nem por isso à dor,
pequena distracção de Deus.
A bola chegou ao fim do corredor
e ninguém ma trouxe, desta vez.
Vencer essa dor é encontrar mais dor,
chamar por um nome que não existe.

A não ser que conheças Lázaro (mas
Lázaro, receio, é nome que não se dá a uma cão)
e que ele tenha uma bola só para ti
e que o teu pêlo de cobre e prata
volte a ser uma certeza,

vou ter, Rebeca, muitas saudades tuas.


Theacher was here, org. e edição de Inês Dias, Lisboa, 2009.

domingo, 5 de julho de 2009

RUI MIGUEL RIBEIRO

ROMA


Roma, outra vez, um regresso.
Com o fim do Verão, a casa cobre-se
de um tom mais escuro,
provoca maiores movimentos,
sem nunca permitir um silêncio.

Os livros e os papéis estão revoltos
pelo quarto como despojos de um
tesouro assaltado. Os dedos trazem
ainda restos secos de palavras.
Apenas a tua presença era uma defesa,
um último refúgio para o corpo.

Ao fim do dia, no regresso de mais uma tarde
preenchida de livrarias, dizias-me que parecia
um livro fechado.

E não sei o que te responder.


Europa e Mais 3 Poemas, Letra Livre, Lisboa, 2007.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

RUI LAGE

LARGO DA MATERNIDADE


Não te esqueças
do que é preciso comprar na mercearia:
leite e pão para dar ao dente,
jornais e revistas para folhear,
tabaco no quiosque do Zé Silva
(morreu de cancro, é claro,
se não é uma puta, a vida,
não sei o que será
por mais que me apeteça vivê-la).

Se demorar, é porque assisto embevecido
à migração dos autocarros
ou às obras na rodovia
(também tu sabes ser às vezes
um martelo pneumático),
ou porque algo me trouxe a esta mesa
ao pé da porta do W. C.,
de onde não sairei antes de a noite
pousar no cinzeiro
e rua abaixo, escadas acima,
me empurrar até à porta do lar.

Estarás porventura à minha espera.
Eu, decerto fora de mim,
entrarei no quarto,
alheio às nódoas na camisa
que hás-de lavar no tanque amanhã,
nódoa negra no braço
e pala no olho
a tapar o inchaço.


Revólver, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2006.

domingo, 28 de junho de 2009

RUI PIRES CABRAL

«É BOM VIVER NA TERRA?»


No parque, sobre a relva,
onde é tudo tão difuso,
eu não tenho relação
com a minha vida. Indistinto
entre as dezenas de pontos

que um mestre desconhecido
distribui por acidente
na tela crua da sorte,
não tenho nome ou idade,
nem sequer um coração

para sofrer outra ofensa:
nunca desci ao inferno
de um amor desenganado,
nada perdi que me fosse
precioso ou necessário

e de resto não conheço
os quatro cantos do medo,
nem tão-pouco me pertence
este modo de estar só
que inventei sem querer.

De seguro, por agora,
só tenho o corpo que ofereço
ao calor da primavera –
e nem me custa ser eu, se sou
também qualquer homem

de qualquer tempo e lugar
que alguma vez se deitou
sem cuidados ou remorso
entre as árvores enfeitadas
pela breve luz da tarde.


Oráculos de cabeceira, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

A. M. PIRES CABRAL

AS PROSTITUTAS


Naquele tempo,
elas desciam à vila, as prostitutas –
a única saída,
exactíssima resposta para a nossa
angústia seminal acumulada.
Vinham de Vale da Porca, ou outra
terra assim pasmada.
Traziam na cabeça lenços garridos,
na carteira de mão a triste história:
a sedução primária, a miséria espessa,
mas jamais o vício mercenário.
Nas eiras recebiam nossas águas,
de permeio plantados como reis.
Procuravam lisonjeiras acertar
seu êxtase fingido com o nosso.
Beijavam-nos, diziam: tão novinho!
Suportavam-nos insultos e arremessos.
Com mão experiente (mas não habituada)
guiavam-nos na bela, impreterível,
urgente aprendizagem,
concediam-nos crédito e carinho –
as tãos castas mulheres,
as prostitutas.


Antes que o Rio Seque (de Algures a Nordeste), Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

domingo, 21 de junho de 2009

MIGUEL-MANSO

CONTINUAÇÃO DE JEAN NICOT


sou dentro de mim o que quer fugir
embora vá recusando a cada bafo
o panorama dos astronautas

tiro notas
dos calendários gigantes
das marés do sol e da lua
do rasto agrícola das nossas mãos
sobre a mesa

de madrugada
remo como exilado inca
em direcção à luz

se ainda me for fácil mentir direi
é afinal a única substância do poema
este cigarro entre estrofes


Contra a manhã burra (2.ª edição, revista), Mariposa Azual, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

CARLOS ALBERTO MACHADO

[NÃO DISSE AS PALAVRAS CERTAS]


Não disse as palavras certas
faltou-me o tom e o talento
não tires da minha boca
as palavras que não ouviste
a responsabilidade é tua já te disse
organiza como quiseres as palavras
e os silêncios
o ritmo certo da morte escolhe-o tu
a minha boca continua fechada.


A Realidade Inclinada, Averno, Lisboa, 2003.

domingo, 14 de junho de 2009

MIGUEL MARTINS

[QUEM ACHA QUE A VIDA É PARA LEVAR A SÉRIO]


Quem acha que a vida é para levar a sério
deve andar convencido de que a morte é a
brincar.


Penúltimos cartuchos, Tea For One, Lisboa, 2008.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

PEDRO BRAGA FALCÃO

[A SINCERIDADE DESSA GATA]


A sinceridade dessa gata,
de um tigrado quase infinito,
delicada como alegre jogo
de crianças adormecidas,
lembra-me, à tarde,
quando ouço pianistas,
uma única varanda
e uma única janela.
Como solstícios de inferno
o repuxo abre-se em luz.
Tomara o canto fosse nosso
sem searas e sem ciprestes.


Do Príncípio, Cotovia, Lisboa, 2009.

domingo, 7 de junho de 2009

VITOR SILVA TAVARES

[EU QUERIA SER DO PEN]


[...]

Eu queria ser do pen,
eu queria ser do grémio.
Enfim, ser daqueles men
tecaptos do prémio.

Eu queria ser, já viram,
poeta sublime.
Então, jarryram?
Eu rime.

[...]

Êxtases e delírios
volteando em blue
quem os tem tire-os
e meta-os no cu.


Poesia em Verso (com Rui Caeiro e Afonso Cautela), Livraria Letra Livre (depositária), Lisboa, 2007.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA

COM A MINHA MÃO


Com a minha mão que ainda escrevia, toquei a
sua face
e estremeci.

Quebraram-se os cálices, os espelhos, as lâmpadas
que iluminavam a minha idade,
a minha vida.

Alguém gritou, de repente,
e a sua voz profunda golpeou para sempre o
adormecimento das casas.

O cisne disse a última palavra no lago à
deriva,
e o tigre preparou o salto quando nos seus
olhos se acenderam dois archotes.

Os cordeiros do quinto mês
procuraram, em pânico, os redis do anoitecer.

Com a minha mão que ainda ardia, toquei
a sua lã,
que mais tarde teria a cor do sangue,
a cor do medo na sua alma.

Caminhei pelos campos vermelhos,
pouco depois do extermínio.
Parei, perplexo, sem dizer nada,
sem ser capaz de olhar outra vez o coração das
trevas.

Estás perdido, ouvi ao longe,
à saída da floresta,
estás perdido nos labirintos que te perseguem
durante o sono.

Com a minha mão que ainda arde, escrevo,
esqueço,
sou aquele que parte.


Esta Voz É Quase o Vento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

domingo, 31 de maio de 2009

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

CASA DE CHÁ EM VILA REAL


Numa manhã de junho sentado à mesa de uma
casa de chá em Vila Real tive um sonho que
me espantou e as imaginações na minha cama,
em S. Gonçalo, no Marão,
e as visões na minha cabeça me turvaram.

Por mim se fez este balcão pelo
qual foram introduzidos à minha presença os
frades domínicos da Sé, ali defronte.
Vinham dar-me a interpretação das cornijas
acachorradas da sua casa.

Entraram os frades segundo o nome do nosso
deus. Eu contei-lhes o sonho.

Crescia uma árvore que quase chegava ao céu.
Vinha da margem do Corgo, passava a
cidade, chegava bem alto.
Ao lado falavam d'antigos namorados entre o
coração e o terror

o pressentimento do futuro. Falavam
já dos melhores trechos do bispo Osório,
admirável em latim.
Ao lado crescia aquela árvore
cuja altura era grande dentro e fora da

minha cabeça.
Viam as aves do céu fazerem morada
nos ramos, os frades acharam sombra
sob as traves de madeira da sua igreja e
cantavam derrubai a árvore cortai-lhe os

ramos sacudi as folhas.
A única coisa a fazer era beber o chá e
esperar pela esquina da avenida.


A pequena pátria [de Tronos e dominações], Editorial Presença, Lisboa, 2002.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

MANUEL DE FREITAS

RUÍNAS DE ANSIÃES E CARRAZEDA


Quanto tempo pode durar uma cidade,
a vida de uma cidade, inteira?
É de perguntas assim – inúteis como
todas – que se constroem por vezes
as capitais da nossa solidão, os passos
que fugazmente nos conduzem
à alegria e ao desespero, à voz possível.

Não é difícil precisar a rude e fortificada
duração de Ansiães, a velha: do século
XI a 1734, por ignorados motivos.
Menos exactos são os túmulos pré-cristãos
que se abriam na dureza do solo transmontano,
com lugar vazio para três pessoas. Éramos
mais, nessa tarde que foi do largo de Grijó
à imensa desolação de Carrazeda, terminando
apenas (e tão bem) em Parada de Cunhos.

Mas são esses – os de Carrazeda, a nova –
os túmulos vivos que nos restam:
cafés apinhados, lojas que se esqueceram de fechar,
a vasta e inacreditável quinquilharia que
faz da Papelaria Horizonte um exemplo de sucesso.
Penhores, dispersos, de algo que nunca existiu.

Um país, garantem-nos. Mas Ansiães, a velha,
nasceu antes da nacionalidade, embora
a tenha acompanhado o melhor que pôde.
Parecem demasiado perfeitas, estas ruínas,
demasiado diferentes daquela que será um dia
a nossa. Entretanto, abelhas, gafanhotos
e lagartos confundem-se com a teimosia das pedras
que a todos, e a nós também, sobreviverão.

É o seu modo calmo de profanar as duas igrejas
românicas – o que delas sobra – e os bruxedos
encenados por quem da vida ou da morte espera ainda
alguma coisa. Pelos afortunados, em suma.
Quanto a mim, gostaria apenas de saber se
existe mesmo a borboleta em forma de forquilha
que te pousou no ombro (as fotografias, escusado
dizer, não serão prova bastante). A única certeza,
para já, é a de que não caberíamos em nenhum
dos túmulos (a observação foi do Rui, e pertinente).

As cidades, já se sabe, também morrem. Mas poucas vezes
terá sido tão belo o desencanto de o saber. «Bem-vindo
a Benlhevai» – parece querer dizer o vento
a estes frágeis viandantes, desprovidos de aguilhada.


Intermezzi, op. 25, Opera Omnia, Guimarães, 2009.

domingo, 24 de maio de 2009

HELDER MOURA PEREIRA

[PALAVRAS QUASE INAUDÍVEIS POR BAIXO]


Palavras quase inaudíveis por baixo
de um ritmo, pareciam palavras
quando encostaste o ouvido
ao pequeno pássaro. O pequeno pássaro
tem um coração que continua a bater
dentro do seu corpo depenado, quase
não nasceu e já está a morrer.

Está um homem de idade indefinida,
vestido de cor indefinida, nem alto nem baixo,
nem gordo nem magro, iluminado pelo verde
da cruz da farmácia, vê-me a pegar no pássaro
e quando eu me aproximo ainda se indefine
mais, tem medo, desata a fugir e eu grito-lhe,
homem indefinido, venha cá, não vê que é
apenas um pássaro que está a morrer?

Depois foste a apanhar o comboio que pára
em Todas, tivesse sido outro o comboio
que apanhaste e tudo seria diferente.
A vida toda seria diferente. Seria
melhor, seria pior, seria diferente.

Olha-se para aquele corpo e não parece
que esteja preso por arames. O corpo
fará análises e exames. Valores normais, nada
de especial, não há razão para alarme. Mas, se
se olhar bem, ver-se-ão os arames
que o prendem. A quê? Prendem-no
ao amor, porra, ao amor, é preciso gritar?

Nem no sonho nem na vida se sabe
o fim, acordo-te antes que a dúvida
te faça retirar a mão de onde repousavas.
Ainda me atormentais, banais segredos
do reino animal, atormentar-me-eis sempre,
pelos vistos sempre, sempre, sempre.


Segredos do Reino Animal, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

JAIME ROCHA

POEMA QUATRO


Exausto, pela manhã, o homem contempla a
sombra das mulheres que desaparecem junto ao
mar, misturando-se com os crustáceos. A sua
dor está dentro dos búzios, numa fala que lhe
paralisa os músculos. Os olhos apenas sentem as
imagens da música e as suas lágrimas solidificam
como se pertencessem a um grupo de fósseis.
Não há tempestades que devolvam o ânimo aos
pássaros que se encostam às paredes dessa ilha.
Apenas os frutos seguem o seu ciclo, amadurecem
com o sol e preparam-se para as colheitas de Verão.


Magma, n.º 0, Lajes do Pico, 2005.

domingo, 17 de maio de 2009

ADÍLIA LOPES

AS PORTAS


I

Se não fecho
algumas portas
há correntes de ar
a mais

Se fecho
todas as portas
não posso sair
mais

Se não abro
algumas portas
não fecho
algumas portas

Se abro
todas as portas
desintegro-me


II

Atrás da porta
para sempre fechada
está o nada

Houve um momento
em que deixei de gostar
da minha mãe

Houve um momento
em que deixei de gostar
do meu pai

Houve um momento
em que deixei de gostar
de mim

Houve um momento
em que deixei de gostar
de ti

Houve um momento
em que parti

Houve um momento
em que voltei

Houve um momento
em que voltei a gostar
de todos

E todos estão
aqui

Mortos
e ausentes


Le vitrail la nuit. A árvore cortada, & etc, Lisboa, 2006.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA

PARTE POÉTICA


Não é fácil ser poeta a tempo inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos por dia,
pois levanto-me tarde e primeiro há que lavar
os dentes, suportar os incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.
Chegar por fim a casa para a prosa
de uma carne à jardineira, o estrondo
das notícias, a louça por quebrar. Concluindo,
só por volta das duas da manhã começo a despir
o fato de macaco, a deixar as imagens correr,
simulacro do desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.


Relâmpago, n.º 12, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2003.

domingo, 10 de maio de 2009

BÉNÉDICTE HOUART

[HÁ COLARES QUE SÃO COLEIRAS]


há colares que são coleiras
há mulheres que são cadelas
certos homens, cães raivosos

os cães propriamente ditos
não foram para aqui chamados
embora metam o nariz em todo o lado
farejando coisas imaginárias
e, de resto, não falam, ladram
têm com certeza razão


Vida: variações, Cotovia, Lisboa, 2008.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

ARTUR ALEIXO

[AO FIM DA TARDE, NO PÁTIO DA ESCOLA]


Ao fim da tarde, no pátio da escola,
abrem-se os primeiros buracos
para jogar ao berlinde. Milimetricamente
procuram-se os locais do ano
passado. Dos mais velhos
é o primeiro testemunho na arte de invadir
o mundo. Afoitos, explicam também
como os botões sobram na roupa
dos mortos. Durante o velório
esperam o momento certo e zás,
sem contemplações, arrancam-nos dos punhos.

Roubados os botões, fica o relógio
valioso para enumerar os percalços
do mundo.


Telhados de Vidro, n.º 5, Averno, Lisboa, 2005.

domingo, 3 de maio de 2009

JOSÉ MÁRIO SILVA

O. F. (1967-2007)


Do que não precisamos agora é de brilhos fúteis,
truques verbais, exercícios de lirismo magoado.
As palavras são só palavras, nem coisas maiores
nem mais altas, apenas pedras que lançamos
ao poço para ouvir como se agitam as águas.
Lá fora o vento e os telhados agrestes, o céu
da cidade ostensivamente idêntico ao dos
dias felizes. Empilhamos, melancólicos,
livros que já foram mais transparentes.
Conferimos as margens, a mancha gráfica,
os indícios de uma perfeição talvez inútil.

Mesmo olhada de frente, a ausência
continua a ser cruel, o silêncio uma
ignomínia. Descemos à rua, bebemos
café, fingimos seguir em frente. As
palavras são pedras que afinal ficaram
nos bolsos, guardadas para um inimigo
que se ri e só destapa o rosto medonho
quando está fora do nosso alcance.


Luz Indecisa, Oceanos, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

JOÃO ALMEIDA

MAR CALHADO E ESTE SANGUE AINDA QUENTE


saí da cidade como de uma rua sem nome
não me lembro de nada, irei ter com o que houver

levo barulho no saco preto às costas
nódoas na roupa interior
e um poema da perna de pau

a alma foi dar horas, já não regressa e virá diferente
resta matéria gorda que a água do chuveiro não levou
um buraco no chão, e má memória

há versos que chegam à cancela como cães sem dono
outros aparecem e fazem chover
também me perco e deliro


Glória e Eternidade, Teatro de Vila Real, 2009.

domingo, 26 de abril de 2009

LUÍS FILIPE PARRADO

TUDO O QUE O MEU PAI ME DISSE QUANDO, AOS 15 ANOS, DECLAREI EM FAMÍLIA QUE IRIA COMEÇAR A ESCREVER POESIA


"Antes
de te sentares
à mesa
lava bem
essas mãos."


Criatura, n.º 3, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

JOSÉ CARLOS BARROS

DO QUE A VIDA PODERIA TER SIDO


Os amigos juntam-se e falam do passado,
da música que já não se ouve na rádio,
do inverno em que choveu semanas a fio
e o rio saiu das margens para desenhar

nos troncos das árvores os círculos imperfeitos
da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres
que se renderam para sempre às palavras do amor,

das perdizes caindo de asa nas encostas
iluminadas da urze, das corridas memoráveis
do vinte e cinco de abril, das tardes de domingo
que haveriam de envergonhar a uefa

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios
dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos
falam: do que a vida poderia ter sido
se não fosse a filha da puta da vida que foi.


Criatura, n.º 3, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

domingo, 19 de abril de 2009

DIOGO VAZ PINTO

ASTROLÁBIO


Guardei o recibo, que não serve para nada.
Dados impessoais: o nosso subtotal foi de 6.35
— pediste uma água mineral, um café
e uma sandes de ovo (em que nem tocaste);
pagámos caro por estarmos ali os dois,
na cafetaria do aeroporto com uma hora inteira
só para dizer uma palavra. Tudo
processado por computador, IVA incluído.
Uma operação que teve início precisamente
às 04:55 da madrugada. Agora
temos muito tempo para nos contentarmos
por já não termos que disputar as contas,
tu pagas os teus cafés, e eu sem ti
passo bem sem café.


Criatura, n.º 3, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA

AO ANOITECER


Sou um velho rato celibatário
– a lei não me permite casamento.

Outros encontram sem dificuldade
o universo pronto a vestir

logo de manhã, desde que nasceram.
Depois trajam todas as convenções

– que lhes assentam bem, do colarinho
às mangas, até parece que Deus

é um alfaiate por conta deles.
A nós, a melhor roupa fica mal

– em nenhuma loja vendem sapatos
que nos deixem ir noutra direcção,

nem anel que não faça propaganda
à ordem sempre «natural» do mundo.


O Casamento Sempre Foi Gay e Nunca Triste, & etc, Lisboa, 2009.

domingo, 12 de abril de 2009

NUNES DA ROCHA

CANTIGA DA TININHA DO SEIXAL


Ay eu coitada, prá qui 'stou
Ervilhaca, à espera do meu Júlio
Que está de ressaca! Muyto me tarda
O meu Júlio na Guarda.

Ay eu coitada, prá qui 'stou
De mão no cono, por meu Júlio
Que falta co abono! Muyto me tarda
O meu Júlio na Guarda.


Cancioneiro da Trafaria, & etc, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

VINDEIRINHO

I


num impulso os dedos dela percorrem-lhe o index do rosto e as
pu
pilas dos olhos fixa
mente centraram
se imemoráveis naquela planície imensurável dos dele – passou
lhe inadvertidamente a mão – dedos, palma, pulso – pelas
costas enquanto todo

um cansaço impuro, quase extraordinário, de uma avioneta
atingida
por um raio – pensa n

a quantidade de vasos de flores que tem na
varanda inconcebível e sorricanta meio
adormecida

na casa não há televisão,
na casa não existem âncoras, não há incenso e os incansáveis
navios
partiram, saíram pela porta de incêndio das traseiras em
pianinho, pé ante



Domésticos, Black Sun Editores, Lisboa, 2001.

domingo, 5 de abril de 2009

TIAGO ARAÚJO

O LUGAR DO MORTO


ao teu lado, no lugar do morto, enquanto
conduzes a conversa a uma frase sem
preparação. chegámos tarde à praia,
como a quase tudo. o vento levanta o
pó do parque de estacionamento e não
saímos do carro. não sei a resposta certa
e por isso represento mal o meu papel secundário.
limito-me a ficar em silêncio, onde
sempre me senti mais confortável.
um lugar sombrio, discreto, abrigado
e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.


Livre arbítrio, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A. M. PIRES CABRAL

CASA EM RUÍNAS


O xisto das paredes acolheu
os poucos desejos. O telhado
cortou os grandes frios da geada,
desviou a chuva das enxergas.
Pelos postigos entrou alguma luz.
Rezou-se e morreu-se nessa casa.

Hoje as paredes vão-se aos poucos derruindo:
aproximam-se do chão de que nasceram.
Como se se executasse nela
um antigo memento: quia petra es
et in petram reverteris.

Há muito que o vento derrubou
a derradeira telha. Caíram de podres
as vigas do telhado, e há já alguns invernos
que deram achas para arder no lume.
Quase não há vestígios de postigos –
salvo uma floreira que parece ali
um capricho escarninho.

Cumpriu-se na casa um ciclo.
Hoje não tem serventia,
salvo para alguns animais furtivos
que a ocupam e lhe pedem afinal
as mesmas funções simples
que aquele que a edificou pediu outrora.

Na sua decadência persistente,
a casa mete pena, como todos
os sonhos que algum dia floresceram
e depois se foram esfarelando.

Está visto: as casas não têm
a mesma estouvada vocação
de eternidade
que atormenta os seus donos.


Arado, Cotovia, Lisboa, 2009.

domingo, 29 de março de 2009

NUNO MOURA

[COM O SEU CABELO DE COMA]


Com o seu cabelo de coma
e a mão a erguer os beicinhos de mola
ele olhava para cima e eu segui-o
apanhei alguns dos seus pensamentos
devo tê-lo apanhado no mesmo verso do tecto
casámos no dia 10 de Junho feriado
depois o gajo percebeu
que eu estava sempre de escada feita
para os seus pensamentos
ele aprendeu
começou a fazer o mesmo comigo
aquele gajo tá noutra fase já
é um puro cabeça-ficçe
um despístulo
aquele gajo
também é treino
por exemplo ele pensa na conferência
com candeeiros de pé alto onde eu estou
aquele gajo
e até consegue ler o bilhete que alguém me passa
para o meio da saia
já não dava para estar com ele
aquele gajo.


Magma, n.º 0, Lajes do Pico, 2005.

quarta-feira, 25 de março de 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA

SUICIDA


Quando me lancei fi-lo na convicção
de que o meu sofrimento mudaria de dono,
ficaria para ela, merecido legado
para quem sempre gostou de nutrir o ciúme,
essa carnívora planta a cujo habitat
chamamos coração. Eu pensava desfrutar
da vingança por toda a eternidade.
Mas o facto é que à medida que o meu corpo
descia em direcção ao rio um calafrio
fez-me pôr em dúvida a eficácia do castigo:
e se ela recusar a expiação, se for mentira
este consolo que me ofereço, derradeiro?
Ao passar, amigos, pelo tabuleiro de baixo
já ia arrependido. O pânico safou do meu rosto
o beatífico sorriso. Que estúpido sou,
que mesquinho, bem mereço... e não tive tempo
para pensar mais nada. Tu que passas
por esta lápide, escuta: ninguém morre de amor.
De orgulho sim, de despeito, de pura idiotice
ou desejo insaciado. E o sermos amados
quase sempre só depende de nós.


Telhados de Vidro, n.º 2, Averno, Lisboa, 2004.

domingo, 22 de março de 2009

RENATA CORREIA BOTELHO

CARTA PARA A.


viste que os dias não passavam
disto, e viste bem. desse lado
do céu, tens o melhor miradouro
sobre a madrugada. se encontrares
o pintainho que sepultámos,
em segredo e lágrimas, no
quintal das tias, pede-lhe o
arco da sua asa nas noites de lua nova.
remete-me, quando puderes,
pacotes de chuva miúda, gosto
de a ver decalcar a terra, fundir-se
com as sementes de milho
no canto da achadinha.

entretanto, vou montando o
telescópio, com as instruções
que me deste. põe-te à vista
e combinamos um gelado a
meio caminho,
à hora da infância.


Avulsos, por causa, separata da revista Magma, Lajes do Pico, 2005.

quarta-feira, 18 de março de 2009

JORGE GOMES MIRANDA

DIDO AND AENEAS, HENRY PURCELL


O que arde quando tudo arde
não são as torres de Cartago
mas esta cidade de sombra, transformação
fabril, cenografia marítima
que um dia quisemos fazer nossa, no início
de um milénio de míseras vozes –
lamentações com excesso de vibrato,
frases de uma elegância inexpressiva.

Sobre o mar as naus,
uma luz triunfante?
Mistificações, enganos
de fim de tarde.
Prelúdios de uma desistência
sem pantomimas
e momentos operáticos.

Os teus braços, interlúdios musicais
no estertor urbano.


Falésias, Teatro de Vila Real, 2006.

domingo, 15 de março de 2009

JORGE ROQUE

[PODER E CONTRAPODER PERSEGUEM CEGOS O MESMO PODER]


Poder e contrapoder perseguem cegos o mesmo poder. Assim não é de espantar que a inteligência do poder consista precisamente em fomentar o contrapoder. Um preceito antigo por largos séculos testado: a melhor forma de derrotar o inimigo é seduzi-lo.
a
a
Telhados de Vidro, n.º 8, Averno, Lisboa, 2007.

quarta-feira, 11 de março de 2009

AMADEU BAPTISTA

[O TOLDO ILUMINA O QUE OUTRORA FOI CASA RURAL]


o toldo ilumina o que outrora foi casa rural
e de onde chega ainda o cheiro denso
a erva recém-cortada há cinquenta anos
e a leite fresco de recente ordenha.
a cadeira de plástico está molhada
mas sento-me, ainda assim. não muito longe
os homens invadiram o terreiro
e sob a copa de um cedro centenário
jogam o fito contando pelos dedos
concentrando nas mãos o dom do sobressalto
com que a vida que têm os derruba.
é gente de idade, não são velhos.
vistos assim de perto parecem mais crianças
que acabam de chegar vindas da escola
do que vultos vergados pelo peso dos trabalhos
tão duros como os que já passaram.
olhando-os penso em ti, comovo-me em segredo,
pergunto-te a distância a que te encontras
e quais os teus desígnios trazendo-me para aqui,
sabendo-se que preferia estar com os meus filhos
na casa que perdi.
é indiferente culpar-te ou não culpar-te.
é indiferente pertencer a esta cisão
que me determina a palavra e o silêncio,
o mal de ter nascido, a dor de ir morrer.
perdida a juventude a hora do abate
apenas configura o desencanto
que só pode transcender quem me transcende
pela pouca misericórdia disto tudo.
levanto-me, dou dois passos,
aproximo-me do balcão por um copo de água
e vejo na tv imagens da barbárie.
com um fio de sangue sulcando-lhe a cabeça
jaz um homem sem peito entre as ruínas
e há uma anciã que em silêncio grita.
por um segundo vejo tudo turvo
e quase compreendo. de quanto recebi,
o carro resplandecente é a mais-valia.


Os Selos da Lituânia, & etc, Lisboa, 2009.

domingo, 8 de março de 2009

VASCO GATO

PRIMAVERA PRIMEIRA


estremeço desde o princípio do meu rosto
desde o momento em que sorri e me sorriram
e é nesse lugar ínfimo que suspendo todas as palavras
que fecho os olhos e sinto a frescura de todas as águas
o oceano que cessa e atende o esvoaçar da primavera

é a primeira primavera de todos os outonos
é aqui que em silêncio se bordam os calendários
dias entre dias e sobre dias e as memórias que escapam
e não mais se alcançam se não nos tornamos menores
– no futuro não há esquecimento nem segredos
cada coração guarda apenas o que for mais comum


Um Mover de Mão, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

quinta-feira, 5 de março de 2009

RUI PIRES CABRAL

«HE LOVED BEAUTY THAT LOOKED KIND OF DESTROYED.»


Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.


Telhados de Vidro, n.º 8, Averno, Lisboa, 2007.
[Versão revista pelo Autor, para Oráculos de cabeceira, Averno, Lisboa, 2009.]

domingo, 1 de março de 2009

MANUEL DE FREITAS

PRINCÍPIO


Havia junto ao velho portão
um monte de tijolos vermelhos
e não existe nenhuma razão concreta
para se considerar relevante aquele momento.

Porém, julgando tocar a eternidade,
a criança ordenou ao tempo
que parasse. Pequeno deus
brincando sozinho ao entardecer,
sob as amarras azuis do bibe.

A ordem, claro, não pôde
ser cumprida. E só lhe restam
agora o tempo, o nada, a morte
e as palavras que não sabem dizê-los.

Ou essa música para mãos paradas
que trouxe consigo o Outono,
junto do velho portão verde
que tantos anos depois reabriu.

Chama-se Pandora, Cassandra,
Télefo, mas volta a assinar

Manuel António.



Beau séjour, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

ANA PAULA INÁCIO

[OS MILAGRES ACONTECEM]


Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.


Vago Pressentimento Azul por Cima, Ilhas, Porto, 2000.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

PEDRO JORDÃO

I'M A GHOST STORY


eu costumava morrer por acidente. entendam:
eu não sabia o que eram corpos desabotoados.
eu tinha sentimentos exactos e caía em poços
que não vinham nos meus mapas de algibeira.
agora caminho acompanhado por quem partiu
e abandono-me metodicamente a cada desastre.


Criatura, n.º 2, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2008.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

DIOGO VAZ PINTO

PELOS PIORES MOTIVOS


Uma última canção antes que deixe a lua
desistir de nós. Depois será tarde, mesmo
que insistas contra o tempo na repetição
do mesmo beijo, outro golpe fraco e triste,
sinal apenas de que nunca tivemos jeito
para mentir um ao outro. De um certo modo
(que não resultou melhor a nosso favor)
fomos sempre fiéis e até nos quisemos bem.

Esta noite, se eu prefiro assobiar, és tu
quem dança. Seguimos numa despedida
que não sendo a primeira nem a última
vem sendo a constante, e por ruas
que não se lembrarão de nós, retiramo-nos
desvirtuando a melodia, no conforto
estranho de estarmos juntos, mas dilacerados
pela presença de uma terceira sombra.


Criatura, n.º 2, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2008.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

DAVID TELES PEREIRA

CÉLINE

para a Julie

A vida tem destes acasos literários:
um comboio, dois livros e a pior
das razões para nos apaixonarmos.
Tenho vinte e dois anos e o equivalente
em retratos teus – periféricos ou não –
catalogados de acordo com as horas psicologicamente
intermináveis do teu sorriso.

O nosso amor é como o lado vazio duma ampulheta,
ou seja, inverso ao próprio tempo que não marca
o surgir inesperado daquelas noites em que tudo acontece
numa peça de teatro à qual nunca comparecemos.

As tuas mãos são um jardim demasiado inconstante
para fazer fila e esperar a morte. Tens seis letras no nome
e antes que amanheça saberei em que lugar do meu corpo
cada uma delas cabe.


Criatura, n.º 2, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2008.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

VÍTOR NOGUEIRA

SOBRESSALTO


Um escape livre corta a Rua Alexandre Herculano,
fende, talvez sem remedeio, a escrita de um soneto.
O Senhor Gouveia não suporta marialvas
com fumaças de Apolos e farfalhices de Mercúrios.

Hoje, que os tempos mudaram, os D. Juans
não usam fina lâmina de Toledo, nem vão
da dama preferida, a lança em riste, disputar
a soberania da beleza, em ginetes de fina raça.

Hoje, a espada é, quando muito, um telemóvel;
os corcéis, motocicletas barulhentas; e o chapéu
emplumado, um capacete (que às vezes, apeados,
mantêm na cabeça, como um quico de comédia).

Depois, claro, os romances de amor são menos vivos,
menos cintilantes de ardores apaixonados.



Senhor Gouveia, Averno, Lisboa, 2006.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

LUÍS QUINTAIS

A MÚSICA


Depressa
as gargantas
foram cortadas.

Agora, em ti, habitando-te:
música desse sangue
tão espesso,

tão mais espesso
que a água.


Mais Espesso que a Água, Cotovia, Lisboa, 2008.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

CARLOS BESSA

SOMBRAS


Em agosto, à sombra de uma esplanada
Da Batalha, no Porto, a beber cerveja
Água tónica, ruidosos e contentes, todos.
Ele com um livro de Gil de Biedma.
Folheia-o enquanto um aventureiro da guitarra
Dedilha a sobrevivência dessa vagabundagem
Que já foi literatura e cinema.
Lembra-se, então, de um homem que vendia poemas
Para comprar laranjas ou de um outro que
Os dava a troco de um sorriso.
As arestas da cidade ferem-lhe o pensamento.
Tem de tudo, angústia e humor
Arrumado nas estantes e sabe que
Quanto mais se vive com o tempo
Mais se morre com ele. É difícil
Permanecer em silêncio, continuar
No fingimento dessa felicidade.
As gargalhadas param. Talvez um poeta
Não saiba senão falar do que se esqueceu.
Pst pst, a conta, por favor.


Em Trânsito, & etc, Lisboa, 2003.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

A. M. PIRES CABRAL

COMPUTADOR NO LIXO


Eis um computador
no lixo. E todavia
o crânio de lata teve memória dentro
– gigabytes dela! –,
fez as quatro operações,
aceitou versos
no seu imaculado
vazio virtual.

Agora já não soma
nem subtrai,
nem geme poemas, nem sublinha
erros de ortografia.
Os pingos de solda, precários
neurónios de metal,
perderam a memória.

Já que te antecipaste,
companheiro,
diz-me como é não funcionar.

E se a ferrugem dói.


Como se Bosch Tivesse Enlouquecido, João Azevedo Editor, Mirandela, 2003.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

RUI CAEIRO

PORCOS – 1


Na minha terra os porcos engordam, engordam
mas são sempre mortos antes de rebentarem
que os alentejanos é tudo gente pacífica


O carnaval dos animais, Letra Livre, Lisboa, 2008.

domingo, 25 de janeiro de 2009

MIGUEL-MANSO

CAFÉ CASTRO


com cigarros dando para altos janelões
com garrafas soturnas canções vazias
medito em esquemas falhos de viabilidade
financeira – são um descanso estas imaginações
diletantes e portuguesas na recuada
cidade de Budapeste

permitem chegar apenas a este lugar isolado
ao plano B: texto que o autor não
burila no interior do café

mas proponho-lhe:
esqueça tudo isto os cartazes cubanos a empregada
curiosa e loira e avance para o poema seguinte
sem grandes remorsos

evitará demorar-se num desenho de nuvens
no tecto de um quarto (qual?)
festejar o fim de nenhuma vindima
aperceber-se do erro juvenil que é fechar um poema
com a palavra morte
sobretudo não lhe falarei de Walt Whitman
ou David Beckham

mas depois, peço-lhe
atrase-se outra vez suspenda por um momento a leitura
num desses gestos vazios: coçar a cabeça
coçar o queixo

espere que este autor recupere de novo terreno
e partamos os dois para baixo – haverá outro sítio? –
para o poema seguinte


Quando escreve descalça-se, Trama, Lisboa, 2008.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

CASTELO DO REI


Não passa de um retrato pintado por João
Baptista Ribeiro, nem sequer excelente, datado de
1828. Nesse ano os três estados do reino aclamam
Miguel, rei absoluto. Homenagem,
e também paixão, sobre o tempo inteiro
vencido. Sei de quem o visite e fique preso a uma
franja do tecido da camisa; parece papel transparente,
lágrima sobre a mão direita
que segura o ceptro. O nariz levemente aquilino,
suave castanho o olhar
e os lábios – pesaram todas as palavras no exílio
a enganosa derrota dos ritos, e da morte
quando se chega a um cais estrangeiro de mãos
vazias. No grande rumor da outra margem
ninguém sabe quem é dono do seu fogo

parou o rei debaixo de uma árvore
o sentido e o destino têm a cor da face honrada
os banqueiros, a usura, trazem as chaves
descarregam nos vestíbulos de pedra negra a infelicidade.


Castelos: I a XXXV, Averno, Lisboa, 2004.

domingo, 18 de janeiro de 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA

QUATRO


Nesse tempo ainda as raparigas
não tinham sido inventadas.
Éramos só nós, o bando dos andróginos,
a correr atrás dos gatos.

Amoras e ameixas acenavam-nos
atrás de gradeados.
Quem mijava a cinco metros
empunhava o caduceu.
A ordem natural era seguida
com feroz habilidade.

Nenhum de nós sabia
o decálogo de cor. À força
e ao arrojo chamávamos humano.
Entrávamos em Tróia de joelhos
esfolados. E uma pedra, bem lançada,
valia um argumento.

O pior que nos podia acontecer
era sermos exilados, condenados
a brincar ao invisível
com a raça das escuras raparigas,
aprender a passajar o verso heróico.

Só mais tarde o gineceu saiu à rua;
trazendo laçarotes, mandamentos,
aromas esquisitos. Mas isso, já se sabe,
é outra história.


Vista para um pátio, Relógio d'Água, Lisboa, 2003.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

RUI PEDRO GONÇALVES

[NESSA NOITE FICÁMOS RETIDOS NA ESTRADA]


Nessa noite ficámos retidos na estrada.
Os seus documentos, por favor.
Sim. Pode seguir. É sempre em frente.

As luzes eram tantas.
Projectavam, lado a lado, o teu rosto e o meu.

Gostaria de me ter despedido desse céu,
Antes que morresses numa página,
Num quarto de hospital,
Ou noutro lugar qualquer
Onde pudéssemos, em contracurva, despistar o leitor.

Sim. Pode seguir.


Noites na Granja, edição do Autor, 2006.

domingo, 11 de janeiro de 2009

ALBERTO PIMENTA

[MAS QUE MEMÓRIA]


mas que memória
podemos ter
de nós?
e de qual tempo?

deste tempo exterior
em que
depois de criados
e decifrados
os consensuais alfabetos
da exploração
da vida
chegou o projecto Stardust
com material inalterado
desde o início
do sistema solar,
que não nos diz
se então já havia actos de amor
e portanto
não nos diz nada (?)

é preciso emparedar o demente
que propõe que podia haver
o que não há.
e outros
como ele.

acham-se todos
cada vez mais
perdidos
no meio do próprio ruído,
carregando
males
e mails
como se a diferença
entre ambos estes termos
não fosse
apenas o espaço
de uma ou outra letra,
e a ressonância
da voz do homem
que treme fora como a terra dentro.


Imitação de Ovídio, & etc, Lisboa, 2006.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

RUI PIRES CABRAL

LIVROS


O tempo cumpriu as promessas que nos fez
e o dia já não é corrigido pela música:
estas casas não terminam em nenhum jardim,
estão viradas de frente para o inverno, a nossa
direcção. Mas não deixa de ser estranho
reler agora os livros de que gostávamos, os livros
que não podíamos compreender ainda:
enchemos com eles as estantes do futuro,
para o dia em que não poderíamos suportá-los,
de tão próximos. A bela geometria das superfícies
não pode continuar a distrair-nos de tudo
o que nos atormenta: a vida é isto, esta imensa
e inútil espera, e os livros afinal
jamais nos ensinaram outra coisa.


Praças e quintais, Averno, Lisboa, 2003.

domingo, 4 de janeiro de 2009

MANUEL DE FREITAS

SÃO MARTINHO


Tenho atrás de mim um bar
e à frente um cemitério.
Assim (na opinião de uma amigo)
deveria terminar não apenas o postal
mas um poema que não escrevi.
Serviam, para acompanhar as cervejas,
batatas a murro tão frias como eu.

Talvez o postal bastasse, agora que
a igreja velha, onde o meu pai
aprendeu música, já só abre
para velórios — diariamente, portanto.

Calado, à minha frente, um cemitério
– e, apenas um pouco atrás,
canções que vêm morrer
junto ao balcão do bar

não sei por quanto tempo.


Boa Morte, edição do Autor, Lisboa, 2008.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

ARMANDO SILVA CARVALHO

[VIAJOU SEMPRE ENTRE NÓS O RISO AGUDO DOS CÍNICOS]


Viajou sempre entre nós o riso agudo dos cínicos.
Houve palácios de palavras no ar ao nível do volante
Ou então uma perna de seda, umas calças eróticas
Nas maiores noites de glória da mão que te controla a força.

E sempre esse mau ciúme do teu génio
Em baixo, numa segunda instância
Das mudanças do sexo.


O Amante Japonês, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008.