domingo, 31 de janeiro de 2010

ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

LUCIDEZ


Em cada instante, a poesia
Morre em mim.
E a mão certeira que a escrevia
Escreve assim:

Qualquer poesia alheia
Não pode ser comparada
Com esta minha, tão cheia
De nada.

Quem a lê logo conhece
Que é
Aquela que não merece
Nem nota de rodapé.

E, se a estudou, sabe agora
Que perdeu a inspiração.
E cora
De lhe haver dado atenção.

Quem sou de mim foi-se embora:
Pára, de vez, coração!
(Mas dilacera-me a espora:
– Ainda não!)


Ainda Não, Averno, Lisboa, 2010.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

RUY VENTURA

[ESTA SALA FOI OUTRORA UMA VARANDA]


esta sala foi outrora uma varanda.
desse tempo ficaram um candeeiro,
uma persiana para sempre aberta,
uma janela e um alegrete
onde nascem e crescem flores de plástico.
decerto:
a minha presença não existia ainda.
embora esta idade ultrapasse a do alumínio,
separando o jardim
e a casa.


Sete Capítulos do Mundo, Black Sun Editores, Lisboa, 2003.

domingo, 24 de janeiro de 2010

VASCO GRAÇA MOURA

6.


e à minha neta francisquinha,
senhora que é do seu nariz,
deixo a ternura que esta linha
desajeitadamente diz
e seja a flor desta raiz
já desgrenhada que deu frutos
e tenha sorte num país
em que o avô lidou com brutos.


Testamento de VGM, Asa, Porto, 2001.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

MANUEL CINTRA

[BEBER CHÁ DE MALVA]


Beber chá de malva e comer sopa de urtigas: é mais ou menos nisto que se resume o ser português.


Borboleta, edição do Autor, Lisboa, 2006.

domingo, 17 de janeiro de 2010

RUI PEDRO GONÇALVES

[O QUE DIZEM OS ESPELHOS, IMPERADOR?]

para a Inês Dias

O que dizem os espelhos, Imperador?
Será o vazio quem procura as imagens
Ou são as águas que esperam rostos mergulhados – carruagens
cheias de transeuntes
Que passeiam nesta margem, junto ao rio?

Não dizes.

Acabas sempre por guardar segredo.
Fazes o teu jogo.
Começas, acabas, mas permaneces imóvel como o espelho que,
um dia,
Hei-de partir.
Partirei, sim. O teu reino não dura sempre. Nem o meu.
E as imagens quebram-se contra o mundo novo. São coisas
recentes
Novas danças
Que fazem com que as coisas sejam, nem sei como dizer, talvez
Como um pêndulo de relógio.

Mas um dia, se quiseres
Diz-me se o vazio é actor principal.
E quanto tempo está em cena. Se alguém o aguarda
Mesmo depois de actuar
Ou se vai mesmo em digressão.

Existe um espelho que me espera.

Não me quero reconhecer.


Telhados de Vidro, n.º 13, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

JORGE ROQUE

2


Da paixão cansei-me (pode acolher tanta morte um corpo, esse mesmo que brilha à luz do desejo, esse mesmo que guarda a promessa da alegria). A verdade gastou-se (isto é o mais fácil de compreender: a verdade gasta-se, quando chegamos ao lugar de a encontrar, sabemos por fim que não existe). Sobrou o que sou e o que não sou também, pelo meio a linha de uma estreita solidão, e é isto que te dou (isto o que te posso dar). Só aqui, só agora, este sorriso de estar vivo, e por vezes o cansaço (que embora não pareça faz parte do sorriso). E agora já me entendes? E agora ainda me queres?


Telhados de Vidro, n.º 13, Averno, Lisboa, 2009.

domingo, 10 de janeiro de 2010

MANUEL DE FREITAS

RETRATO DE POETA DESCONHECIDA (1)


Abordou-me em frente à
Brasileira, na fria tarde
de Janeiro. Hesitante,
segurava uma mochila preta.
Pensei que ia pedir uns trocos,
cigarros, respostas inúteis
a um inquérito de passagem.

Enganei-me. Afinal, estamos
todos demasiado habituados
a dizer que não. Queria apenas
saber se eu gostava de prosa
– ou de poesia. Se gostasse,
tinha um livro para me mostrar, dela,
que vendia com dedicatória e tudo.

Embaraçado, não quis ver
– e caiu-me redondo o sorriso,
ao perceber-lhe no rosto o desânimo.
A culpa, essa, chegou pouco depois.

Nunca saberei se falava
com a melhor ou a pior
poeta da minha geração.
Mesmo em frente à Brasileira,
sob o frio irrespirável de Janeiro.



El arte de la pobreza: Diez poetas portugueses contemporáneos (de Blues for Mary Jane), org. José Ángel Cilleruelo, CEDMA, Málaga, 2007.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

JOSÉ MIGUEL SILVA

NO PRONTO-A-VESTIR


Não precisava de outro par de calças
mas a luz, o suborno dos sorrisos, a ternura
de cetim obrigaram-me a entrar.
Depois, na pátria dos Lotófagos,
a festa carmesim, o vermelho-coração,
o gosto a paraíso nos decotes de veludo
– entre ganga e algodão dividi o meu pesar.

Tempos houve em que das torres das igrejas
se avistavam os limites da cidade (ou era
da verdade?). Mas foram, como sabes, encolhendo.
Pouco a pouco fomos vendo, impossíveis
de limpar, as nódoas nos tecidos mais amados,
o nastro dos afectos desfiado pelo vento.
Desbotaram os caminhos, alargaram os casacos
e a sombra dos sobreiros, quem a viu e quem a vê.

Nada disso, porém – garantiram-me na loja –
poderá acontecer com as minhas calças novas.


El arte de la pobreza: diez poetas portugueses contemporáneos (de Ulisses já não mora aqui), org. José Ángel Cilleruelo, CEDMA, Málaga, 2007.

domingo, 3 de janeiro de 2010

RUI PIRES CABRAL

O CÉU VISTO DE CIMA


Tu já estavas prometido à tristeza
da cidade mais pequena, mas a noite
tinha passagens secretas, bastava seguir
os sinais.

A sombra de um réptil avançava muito fundo
nos teus estratos, tacteavas num território de pedras difíceis,
às vezes perigosas. Depois imergias e a boca estava
amarga outra vez, a roupa amontoada na cadeira
como o princípio de um poema indesejado.
Reflectindo nos teus olhos, o céu
era um lugar inabitável.


El arte de la pobreza: Diez poetas portugueses contemporáneos [de A super-realidade], org. José Ángel Cilleruelo, CEDMA, Málaga, 2007.