domingo, 29 de março de 2009

NUNO MOURA

[COM O SEU CABELO DE COMA]


Com o seu cabelo de coma
e a mão a erguer os beicinhos de mola
ele olhava para cima e eu segui-o
apanhei alguns dos seus pensamentos
devo tê-lo apanhado no mesmo verso do tecto
casámos no dia 10 de Junho feriado
depois o gajo percebeu
que eu estava sempre de escada feita
para os seus pensamentos
ele aprendeu
começou a fazer o mesmo comigo
aquele gajo tá noutra fase já
é um puro cabeça-ficçe
um despístulo
aquele gajo
também é treino
por exemplo ele pensa na conferência
com candeeiros de pé alto onde eu estou
aquele gajo
e até consegue ler o bilhete que alguém me passa
para o meio da saia
já não dava para estar com ele
aquele gajo.


Magma, n.º 0, Lajes do Pico, 2005.

quarta-feira, 25 de março de 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA

SUICIDA


Quando me lancei fi-lo na convicção
de que o meu sofrimento mudaria de dono,
ficaria para ela, merecido legado
para quem sempre gostou de nutrir o ciúme,
essa carnívora planta a cujo habitat
chamamos coração. Eu pensava desfrutar
da vingança por toda a eternidade.
Mas o facto é que à medida que o meu corpo
descia em direcção ao rio um calafrio
fez-me pôr em dúvida a eficácia do castigo:
e se ela recusar a expiação, se for mentira
este consolo que me ofereço, derradeiro?
Ao passar, amigos, pelo tabuleiro de baixo
já ia arrependido. O pânico safou do meu rosto
o beatífico sorriso. Que estúpido sou,
que mesquinho, bem mereço... e não tive tempo
para pensar mais nada. Tu que passas
por esta lápide, escuta: ninguém morre de amor.
De orgulho sim, de despeito, de pura idiotice
ou desejo insaciado. E o sermos amados
quase sempre só depende de nós.


Telhados de Vidro, n.º 2, Averno, Lisboa, 2004.

domingo, 22 de março de 2009

RENATA CORREIA BOTELHO

CARTA PARA A.


viste que os dias não passavam
disto, e viste bem. desse lado
do céu, tens o melhor miradouro
sobre a madrugada. se encontrares
o pintainho que sepultámos,
em segredo e lágrimas, no
quintal das tias, pede-lhe o
arco da sua asa nas noites de lua nova.
remete-me, quando puderes,
pacotes de chuva miúda, gosto
de a ver decalcar a terra, fundir-se
com as sementes de milho
no canto da achadinha.

entretanto, vou montando o
telescópio, com as instruções
que me deste. põe-te à vista
e combinamos um gelado a
meio caminho,
à hora da infância.


Avulsos, por causa, separata da revista Magma, Lajes do Pico, 2005.

quarta-feira, 18 de março de 2009

JORGE GOMES MIRANDA

DIDO AND AENEAS, HENRY PURCELL


O que arde quando tudo arde
não são as torres de Cartago
mas esta cidade de sombra, transformação
fabril, cenografia marítima
que um dia quisemos fazer nossa, no início
de um milénio de míseras vozes –
lamentações com excesso de vibrato,
frases de uma elegância inexpressiva.

Sobre o mar as naus,
uma luz triunfante?
Mistificações, enganos
de fim de tarde.
Prelúdios de uma desistência
sem pantomimas
e momentos operáticos.

Os teus braços, interlúdios musicais
no estertor urbano.


Falésias, Teatro de Vila Real, 2006.

domingo, 15 de março de 2009

JORGE ROQUE

[PODER E CONTRAPODER PERSEGUEM CEGOS O MESMO PODER]


Poder e contrapoder perseguem cegos o mesmo poder. Assim não é de espantar que a inteligência do poder consista precisamente em fomentar o contrapoder. Um preceito antigo por largos séculos testado: a melhor forma de derrotar o inimigo é seduzi-lo.
a
a
Telhados de Vidro, n.º 8, Averno, Lisboa, 2007.

quarta-feira, 11 de março de 2009

AMADEU BAPTISTA

[O TOLDO ILUMINA O QUE OUTRORA FOI CASA RURAL]


o toldo ilumina o que outrora foi casa rural
e de onde chega ainda o cheiro denso
a erva recém-cortada há cinquenta anos
e a leite fresco de recente ordenha.
a cadeira de plástico está molhada
mas sento-me, ainda assim. não muito longe
os homens invadiram o terreiro
e sob a copa de um cedro centenário
jogam o fito contando pelos dedos
concentrando nas mãos o dom do sobressalto
com que a vida que têm os derruba.
é gente de idade, não são velhos.
vistos assim de perto parecem mais crianças
que acabam de chegar vindas da escola
do que vultos vergados pelo peso dos trabalhos
tão duros como os que já passaram.
olhando-os penso em ti, comovo-me em segredo,
pergunto-te a distância a que te encontras
e quais os teus desígnios trazendo-me para aqui,
sabendo-se que preferia estar com os meus filhos
na casa que perdi.
é indiferente culpar-te ou não culpar-te.
é indiferente pertencer a esta cisão
que me determina a palavra e o silêncio,
o mal de ter nascido, a dor de ir morrer.
perdida a juventude a hora do abate
apenas configura o desencanto
que só pode transcender quem me transcende
pela pouca misericórdia disto tudo.
levanto-me, dou dois passos,
aproximo-me do balcão por um copo de água
e vejo na tv imagens da barbárie.
com um fio de sangue sulcando-lhe a cabeça
jaz um homem sem peito entre as ruínas
e há uma anciã que em silêncio grita.
por um segundo vejo tudo turvo
e quase compreendo. de quanto recebi,
o carro resplandecente é a mais-valia.


Os Selos da Lituânia, & etc, Lisboa, 2009.

domingo, 8 de março de 2009

VASCO GATO

PRIMAVERA PRIMEIRA


estremeço desde o princípio do meu rosto
desde o momento em que sorri e me sorriram
e é nesse lugar ínfimo que suspendo todas as palavras
que fecho os olhos e sinto a frescura de todas as águas
o oceano que cessa e atende o esvoaçar da primavera

é a primeira primavera de todos os outonos
é aqui que em silêncio se bordam os calendários
dias entre dias e sobre dias e as memórias que escapam
e não mais se alcançam se não nos tornamos menores
– no futuro não há esquecimento nem segredos
cada coração guarda apenas o que for mais comum


Um Mover de Mão, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

quinta-feira, 5 de março de 2009

RUI PIRES CABRAL

«HE LOVED BEAUTY THAT LOOKED KIND OF DESTROYED.»


Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.


Telhados de Vidro, n.º 8, Averno, Lisboa, 2007.
[Versão revista pelo Autor, para Oráculos de cabeceira, Averno, Lisboa, 2009.]

domingo, 1 de março de 2009

MANUEL DE FREITAS

PRINCÍPIO


Havia junto ao velho portão
um monte de tijolos vermelhos
e não existe nenhuma razão concreta
para se considerar relevante aquele momento.

Porém, julgando tocar a eternidade,
a criança ordenou ao tempo
que parasse. Pequeno deus
brincando sozinho ao entardecer,
sob as amarras azuis do bibe.

A ordem, claro, não pôde
ser cumprida. E só lhe restam
agora o tempo, o nada, a morte
e as palavras que não sabem dizê-los.

Ou essa música para mãos paradas
que trouxe consigo o Outono,
junto do velho portão verde
que tantos anos depois reabriu.

Chama-se Pandora, Cassandra,
Télefo, mas volta a assinar

Manuel António.



Beau séjour, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.