sábado, 30 de abril de 2011

DIOGO VAZ PINTO

A ALGUNS GRITOS DE DISTÂNCIA

más allá de qualquier zona prohibida
hay un espejo para nuestra triste transparencia
Alejandra Pizarnik

I

A dois gritos e meio de distância
a surdez que se mancha
das cores que me sobraram. Sinto
com a voz, e esta só me dói quando fica
presa às coisas numa evasão
descritiva, palavras abertas
como lâminas sonhando junto
aos pulsos.

A sul disto não encontro mais nada,
só a boca escancarada do silêncio, suja
aos cantos de ideias que
se despenharam, e nós,
dois ou três ou mais, escrevendo
enquanto lhe apodrecemos
na garganta.

Sob sóis apagados, flores que bebem
no escuro, escutando, cheirando
estas mãos e aquilo que lhes dou, e nada
disto é ainda poesia, mau hálito tão-só.
Um eflúvio de frias imagens rente
ao torpor destes lábios. Já o sabes,
agora anda – faz-me o favor –
desvia-te que me aborrece ter que
arrastar também esses dois olhos.


Nervo, Averno, Lisboa, 2011.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

PAULO TAVARES

ÓRGÃOS VITAIS


Podes despir
esse vestido de serapilheira,
mostrar os restos podres da vindima
e dizer-me: «vês, morri».

Também eu fui
adormecendo, também eu tentei
reconstruir os órgãos vitais,
desenhar um a um os contornos do corpo,
embora me faltassem as ferramentas
para materializar o complexo circuito
da memória.

Agora, olhas-me
com os mesmos gestos estáticos,
enquanto o coração palpita noutro lugar
e a boca vai soltando larvas e morcegos.

Podes dizer-me que morreste.
Os mortos entendem-se bem.


Resumo: A poesia em 2010 [de Minimal existencial], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

LUÍS FILIPE PARRADO

COM UNHAS E DENTES


Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.


Resumo: A poesia em 2010 [de Criatura, n.º 5], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

INÊS DIAS

OS POETAS


Para o Rui, o Manuel e o Diogo

À mesa os poetas
trocam imagens e calibram versos
como se procurassem a letra
certa para o seu mapa.
Guardam silêncios sobre folha de ouro
ou constroem pontes súbitas
entre o Amor – assim mesmo, maiúsculo –
e a infância. Salvam raparigas em flor
mas sacrificam a Primavera só
para depois poderem recolher
a beleza, ainda viva,
ainda trémula, do chão.

Ouço-os e espero o regresso a casa
para enterrar finalmente o pássaro morto
e o gato que agonizava no dia do meu aniversário.
Escolho uma música que me devolva
repetidamente todos os amigos
e torne, por isso, menos desolado este final.

E passo as mãos devagar,
com a curiosidade e avidez
que reservava antes para os tesouros
– ou os primeiros beijos – no final de cada livro,
pelas memórias que os poetas abandonaram sobre a mesa
e eu levei ciosamente nos bolsos.


A propósito de andorinhas [com Manuel de Freitas, Rui Miguel Ribeiro e Diogo Vaz Pinto], edição dos autores, Lisboa, 2011.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

EDGAR CARNEIRO

1913-2011

domingo, 17 de abril de 2011

JOSÉ MIGUEL SILVA

ANDRÉ GIDE

Para o Joaquim Manuel Magalhães

O mais veloz corredor da sua geração, pelo menos
no arranque, não admira que tenha chegado primeiro
a muito lado. Mas tão cedo partia, invariavelmente,
que nem louros nem medalhas, pois a prova ainda não
tinha começado. Sofria essa mania de correr por fora
de qualquer certame, por conta própria, em mandatos
espontâneos, auto-atribuídos. Deste modo, andava
sempre sozinho, porque quando os seus émulos partiam,
já ele estava em casa, a preparar com a sombra a sua
próxima aventura, que no fundo consistia em abrir pistas
para quem viesse atrás. Assim, se queria conversar com
alguém, só lhe restava fingir uma queda no senso-comum,
uma lesão no joelho – e amiúde o fazia, pois na verdade
pouco tinha de misantropo, chegando mesmo a execrar
como maldita a compulsão que o levava a partir antes
do tiro de largada, e a chegar primeiro onde ninguém
o esperava. Talvez isso explique a timidez de anacoreta
que sempre exibia, e a prudência relativa das suas passadas.
Dez ou vinte anos depois, acelerados epígonos diriam
morosas as suas corridas, convenientemente esquecidos,
como é próprio de retardatários sem vergonha, que se
faziam melhores tempos (os que faziam), era em pistas
utilmente batidas e inauguradas por ele, o pujante pioneiro.


Público, Lisboa, 16 de Abril de 2011.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

FERNANDO PINTO DO AMARAL

AZUL


Um dia hás-de nascer fora de ti
num sobressalto novo deste céu
onde se afoga a luz da madrugada
já sem nenhuma estrela que te aceite
a translúcida febre das palavras.
Um dia hás-de romper os cegos nós
do monstro a que chamavas coração,
o antigo labirinto que te ilude
a inocente máquina do corpo
na escuridão dos passos desastrados
em busca de um azul que te conheça.
Um dia hás-de falar sem dizer nada
que o mundo compreenda e será teu
esse primeiro azul da madrugada.


Saudade: Revista de poesia, n.º 11, Associação Amarante Cultural, Amarante, 2009.

terça-feira, 5 de abril de 2011

JAIME ROCHA

[O HOMEM VÊ UMA MANCHA AO FUNDO A]


O homem vê uma mancha ao fundo a
mexer-se na sua direcção. É a barca de
Caronte que regressa. A terra engrossa
quando a água é empurrada e o homem
devorado pelo lixo. Os seus pulmões
enchem-se de vazio e morrem, como dois
milhafres deitados num campo de sal. A sua
dor tornou-se mais forte do que as raízes que
rompem o alcatrão. Uma coisa não pássaro
o que ele vê, um vidro a nascer dos socalcos,
um crepúsculo.


Resumo: A poesia em 2010 [de Necrophilia], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio e Alvim, Lisboa, 2011.