sexta-feira, 29 de abril de 2016

RUI CAEIRO

[E AGORA, POR FAVOR, DEITE-SE NESTA CADEIRA]


E agora, por favor, deite-se nesta cadeira. Quer mais chegado para trás? Está bem assim? As pernas, estão confortáveis? Qual a mão que prefere espetar, a esquerda ou a direita? E vá, agora é só trocar o seu sangue por este líquido incolor e indolor de glóbulos químicos. Chute (do verbo chutar), chute para a veia. Durante as próximas horas, curta (do verbo curtir). Faça de conta que lhe saiu na rifa uma viagem à Meia-Laranja. Quer uma revista para ler? Quer a Lux, quer a Caras?


Sala de Chuto, edição do Autor, Lisboa, 2015.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

LUÍS FILIPE CASTRO MENDES

REGRESSO


Já voltei a casa, as portas rangem,
o pó tomou conta de todos os móveis,
deixando-me de pé, a balançar as chaves,
e a interrogar-me sobre o que não fiz.

O tempo que resta não é para confissões
nem para ajustes de contas:
pois quem guarda o guardião, quem despe a roupa
das vestais do templo?
A água corre ainda, um fio sequer, de torneiras
em desuso. Respiro e não deixo de olhar.
Até ao fim não deixarei de olhar.

Que trabalho é este, oculta e extinta miséria
sob os nossos passos?
As janelas com os vidros quebrados, o plástico
por cima dos horizontes perdidos
da transparência. Porque insistes? Porque ficas
à entrada da casa, perdido no olhar
e na memória do que nunca chegou a ser?


Outro Ulisses regressa a casa, Assírio & Alvim, Lisboa, 2016. 

sábado, 9 de abril de 2016

JORGE ROQUE

QUATRO MUROS


Vinte e dois dias de férias, fins-de-semana, feriados, e vida nenhuma para ser a vida do escritor que seria, pelo menos de acordo com o funcionário que pontual pica o ponto, sem braço nem manguito a opor ao avanço da horda liberal.

Ó brilhante aluno que trocou ciências por letras quando ninguém esperava e, bem se sabia, letras são tretas com as quais nem os anjos se governam, quanto mais ele que em vez de asas tinha dores nas costas e, longe do paraíso, contas e impostos a pagar num torpe arrabalde dominado por espertos e caciques.

Ó promissor escritor a ficar fora de validade, passam os anos, passam os livros magros, esforçados, passa a indiferença que em torno deles se abate, a tua realidade são estas quatro horas por noite, estes quatro muros fechados, este quarto de vida roubado ao cansaço, ao tempo de sono, ao convívio com os outros, à alegria de escrever até. Um amador esforçado, um diletante sem meios de o ser, é isso que és. Um parvo, em suma. Ou, no melhor dos casos, um equivocado.

Deito vinho no copo, acendo um cigarro, releio o que escrevi. Não, nada há de errado, está tudo certo. Esta a vida real do escritor que sou, nas quatro horas, nos quatro muros, que me delimitam. Mais não há e, com solução ou sem, não é equívoco.


Cão Celeste, n.º 8, Lisboa, 2015.