quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

JORGE ROQUE

AS PALAVRAS


A princípio somos nós que queremos as palavras, que elas se entregassem era o nosso desejo mais fundo, o mundo tornar-se-ia completo e a vida revelar-se-ia no seu rosto pleno. Mas nada acontece como pensamos. Sucedem-se anos de lutas, cansaços, vitórias pequenas, críticas razoáveis nos jornais, amigos que dizem que gostam e nós sabemos que não assim tanto, estão a ser amáveis e devemos do coração agradecer-lhes, porque gostarem de nós vale muito mais do que tudo o que escrevemos, embora isto seja apenas o começo da aprendizagem. Eis que algo inesperadamente se altera, tão inesperado que só nos damos conta depois, são agora as palavras que nos querem, elas mesmas que se entregam, de certo modo estendendo-nos o que sempre desejámos, tão diferente afinal, tão sem sorte, olhado do tempo que passou. Chamam-nos, puxam-nos, insaciáveis não nos largam, e nós vamos, vamos, no lugar a que chegámos quase nada nos chama e nós pouco queremos ouvir, que havemos de fazer senão ir, ir, mesmo que não haja brilho, mesmo que não haja esperança, e o jogo só possa terminar com a derrota do único jogador. E é isso que repetem os braços caídos com que seguimos, seguimos, sabendo que o mundo só fica cada vez mais gasto e a vida, rosto pobre que enfim olhamos nos olhos, já só nos mostra a nossa morte, os ossos salientes sobre a pele baça, a testa cada vez mais alta, a cara que teremos quando formos velhos, a nossa, exacta.


Nu contra nu, Averno, Lisboa, 2014.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

PAULO DA COSTA DOMINGOS

[QUER-SE UM POUCO]


Quer-se um pouco
de sossego. Uma latada. Eu explico:
vinho em suspensão.

Os animais domésticos chegam-se
à prometida sombra
para os diálogos imaginários
e o afago do pêlo. No seu mundo
de (eventual) violência
o fascismo do capital mantém-lhes
a ortografia intacta, inequívoca
a fonética. E o vinho
não é metáfora lá onde
talvez um deus queira

impor a culpa.


«Voici la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux», Averno, Lisboa, 2014.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

MARIA DA CONCEIÇÃO CALEIRO

[THE FIRST DAY A GIRL DIES]


[...]

The first day a girl dies
No primeiro dia em que uma rapariga morre, talvez ela se tenha lembrado da verdade
Com a sua cabeça esvaziada

No segundo dia em que uma rapariga morre
Com as suas pernas decepadas
Talvez tivesse chegado perto da verdade

No terceiro dia em que uma rapariga morre
Com as suas orelhas cortadas
Talvez tivesse ouvido a verdade

No quarto dia em que uma rapariga morre
Com os olhos arrancados
Talvez tivesse visto a verdade

No quinto dia em que uma rapariga morre
Com a sua língua sacada
Talvez tivesse falado a verdade

No sexto dia em que uma rapariga morre
Com as suas mãos desfeitas
Talvez tivesse escrito a verdade

No sétimo dia uma rapariga
Is going to die

[...]


Too much, Alambique, Lisboa, 2014.

domingo, 19 de outubro de 2014

INÊS DIAS

PONTO SOMBRA

Para o Barnabé,
primeiro e único

Um nó cego no bordado
da manhã. E a ternura
interrompida pelo desfazer
dos dias até esse olhar
depois de tudo,
onde aguardava,
cauda de fora, a morte:

passar sob a pele
(uma dor mais antiga)
a linha que já
não nos prende,
cortá-la com o último beijo,
rematar um coração
cada vez mais do avesso.


Da capo, Averno, Lisboa, 2014.

MANUEL DE FREITAS

MARTINI


Insistimos num facto,
aviltante como nós
– ou talvez por isso.
Não sei se será bem
um facto, isto
que me fez seguir-te,
embora o meu caminho
fosse de facto aquele:

a paragem do 42,
que me traz como sempre
a casa, ao sítio do costume,
cercado de livros, paredes
e vizinhos. Queres coisa
mais banal? Talvez
este coração azul,

a tinta em que escrevo
que são seis horas da manhã
e que os cigarros começam
a saber-me mal (o Martini
não, valha-me isso, ao
menos – que pouco é
mas para nada serve).


Inês Dias [de Game over], Nigredo, Lisboa, 2014.

domingo, 28 de setembro de 2014

JOÃO ALMEIDA

CARTA DE EL PASO


Perdeste por pura estupidez
As palavras entravam-te na cabeça como nevoeiro
E por lá ficavam em nevoeiro
E também por falta de espinha
Pra não dizer outra coisa.

Gostas de vir com o Stonebreaker
Do miúdo absorto como um pesadelo
À luz do dia
Martelando pedra a pedra
Sem a possibilidade de fumar um cigarro na descida.

Devias estar mais atento ao louco
Que não vias atrás de ti
De navalha aberta. Agora não sei que te diga.

Respondes que estás bem embora tenhas dito a verdade
No que diz respeito à pornografia
Ou que a poesia já te deu melhores dias.

Ouve, esquece o puto a partir pedras
Ou então mete-te na droga.

Quanto à questão dos versos
Lembra-te da rapariga silvestre
E da outra que chupava kalipos inocente
Disposta a muito.

Digo isto porque estás a ficar muito pálido.
Em El Paso se quiseres
Podes abancar em minha casa, comes do que houver.
Fode-se e morre-se bastante por cá.


Telhados de Vidro, n.º 19, Averno, Lisboa, 2014.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

ARMANDO SILVA CARVALHO

[PELA CORDA FRÁGIL]


Pela corda frágil
das palavras
as mãos impacientes destes versos
descem
com um cuidado de dominicano
ao entrar na missa.
O domingo da vida veio ao meu encontro.
E eu deito-me nas pedras,
obediente
ao fogo.
Um cão. Um cão de deus.
E que não larga
nunca
as calças de Caeiro.


Verbo: Deus como interrogação na poesia portuguesa (org. de José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia), Assírio & Alvim, Lisboa, 2014.

sábado, 20 de setembro de 2014

INÊS LOURENÇO

ESCRITA CRIATIVA


Havia ainda os pequenos
marçanos de bata de riscado, que dormiam
nas caves das mercearias entre os fardos de
bacalhau e polvo seco. Cruzavam-se na rua
com as aprendizas de modista que começavam
por apanhar alfinetes do chão no atelier, entregar figurinos
às freguesas, encerar os soalhos da mestra e só depois
iniciar bainhas e alinhavos.

Os mestres da escrita criativa
ensinam aos já adultos marçanos
e às prováveis costureiras
a talhar sublimes arroubos ou memórias
porque é bonito ser artista, conhecer as surpresas
da sintaxe, o encanto da melancolia ou o poder, dizem eles, do verbo.

Entretanto esses mestres
da palavra
transmitem os seus belos ofícios, sem a metonímia
de fardos de bacalhau ou polvo seco. E nem
sequer apanharam alfinetes em Ítaca ou
enceraram o soalho do Mestre Caeiro.


Telhados de Vidro, n.º 19, Averno, Lisboa, 2014.

sábado, 6 de setembro de 2014

ADÍLIA LOPES

FRASES


A política é uma forma de distribuir dinheiro.

Ler não é agir.

A inteligente gente é zombeteira.

Nunca me arrependi de ter desistido.

Não se mandam cartas de amor registadas.


Telhados de Vidro, n.º 19, Averno, Lisboa, 2014.

sábado, 30 de agosto de 2014

JOSÉ MIGUEL SILVA

NOCTURNO


A arte já sabemos nasce
da imperfeição das coisas
que trazemos para casa
com o pó da rua
quando a tarde finda
e não temos água quente
para lavar a cabeça.

Tentamos regular
com açudes de orações
o curso da tristeza
mudamos de cadeira
e levamos a noite
a dizer oxalá
como se a palavra
praticasse anestesia.


Ulisses já não mora aqui, 2.ª edição, revista, Língua Morta, Lisboa, 2014.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

ISABEL NOGUEIRA

[PELA JANELA]

[...]

Pela janela, o ar esvaía-se por entre os dedos.
A música competia com o vento.
E as coisas eram o que eram.

[...]

A kind of blue (com Paulo Furtado), Alambique, Lisboa, 2014.

sábado, 16 de agosto de 2014

ROSA MARIA MARTELO

CORTES


Sobre a mesa iluminada pela luz da tarde, uma jarra de flores expõe a beleza cortada, agonizante, assassinada pelo amor da beleza, que a trouxe para dentro de casa, para morrer. Muito juntas, as flores sobrevivem ainda, e encenam no pouco tempo que resta o mundo de onde vieram. Parecem vivas, quase deixam esquecer que são o grande ramo da morte a emergir de um frasco transparente. A contemplação da beleza: acredita na suspensão absoluta do instante, mesmo se tudo em volta lhe diz que não é bem disso que se trata. Repara, alguns ramos já começam a secar.


Matéria, Averno, Lisboa, 2014.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

RUI PIRES CABRAL

[NO, HE SAID, I WILL]


No, he said, I will
fight for my life; and
I will be someone else,
in another room
on a different
Sunday

[...]


Oh! Lusitania, Paralelo W, Lisboa, 2014.

terça-feira, 15 de julho de 2014

MANUEL DE FREITAS

COMOVIDOS A OESTE


[...]

Refiro-me, pois, à utilidade da poesia; não necessariamente num sentido político ou social (aspectos em que ela se revela, quase sempre, uma arma inoperante) – e muito menos num plano estético, uma vez que a beleza não é para o poeta uma conquista, mas sim uma exigência prévia, um compromisso tenso e inadiável. A utilidade fundamental da poesia consiste, para mim, na sua vocação de aproximar pessoas e de diluir falsas fronteiras. O resto – não me levem a mal – é apenas história da literatura.

[...]


Ubi Sunt, Averno, Lisboa, 2014.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

RUI CAEIRO

SABEM QUE MAIS?


Sou um homem dado ao álcool e a eternas dúvidas
e que na rua ou lá onde seja a todo o momento pode tropeçar
ou morrer: voar é que é muito mais improvável

Sou um homem de áridas certezas e uma esperança
a essa arrasto-a pela mão pelos cabelos pelas orelhas
paro escuto e olho antes de atravessar

com ela. E não lhe sei o nome. E não me preocupo


Sobre a nossa morte bem muito obrigado, 2.ª edição, Alambique, Lisboa, 2014.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

MIGUEL CARDOSO

[O QUE QUERIA]


O que queria
o que queria mesmo
era meter agulhas na boca
riscar o disco rígido do riso
e com calma
rebentar escalas de richter
no meio das planícies


Os engenhos necessários, & etc, Lisboa, 2014.

terça-feira, 29 de abril de 2014

JOÃO ALMEIDA

HEIMAT


Enquanto espero a subida das águas
Vou construindo de cabeça
O poema deste dia

Prédios para deitar abaixo
Escalpes de negócios clandestinos
Cães que hesitam a travessia

Os bárbaros chegaram
Governam com ferro e pandemias.


As condições locais, Opera Omnia, Guimarães, 2014.

domingo, 27 de abril de 2014

VASCO GRAÇA MOURA

1942-2014



sexta-feira, 18 de abril de 2014

MANUEL DE FREITAS

ERRATA


Onde se lê Deus deve ler-se morte.
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.

Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.

Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.

Onde se lê Manuel de Freitas deve ser
com certeza um sítio muito triste.


Terra sem coroa, Teatro de Vila Real, 2007.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

JORGE FALLORCA

1949-2014


domingo, 30 de março de 2014

VASCO GRAÇA MOURA

MAIO DE 68


um belo dia em maio
de sessenta e oito, tempo
feito de equívocos,
em alfama, as vizinhas conversavam.

a roupa secava ao sol.
os filhos estavam na escola.
elas falavam dos maridos.
e comentavam luísa, a

apanhadora de malhas em meias,
com o marido fora há dez anos,
sem dar notícias. tinha havido
desordens entre quatro

homens daquele bairro, por causa
de luísa, que os
ignorou e continuava a
cuidar do filho e a

apanhar malhas, sossegadamente,
na janela do rés-do-chão,
inclinando a cabeça como
a rendilheira de vermeer.

estavam as vizinhas
nisto, deplorando
o desperdício da
juventude de luísa,

por absurda esperança e
por delicadeza
assim perdendo a vida, quando
se aproximou um estranho.

deitam-se a adivinhar.
aquele bem podia ser fernando,
marido de luísa
e alvoroçaram-se e um cão ladrou.

no beco, entre
os potes de sardinheiras
e a roupa ainda a secar,
estavam enganadas, mas

tinham razão num ponto:
era um marinheiro grego,
exausto, ainda a ofegar,
depois de uma cena de porrada

das antigas, que não tinha
nada a ver com luísa,
mas que se
chamava odisseus.


Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Laocoonte, rimas várias, andamentos graves], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.

sexta-feira, 28 de março de 2014

NUNES DA ROCHA

[NÃO MAIS, CORAÇÃO]


Não mais, coração,
Atravesses a passadeira.
É muito o trânsito
Quando frívolo,
De sístole em desconcerto
Caminhas.
Segue pelas ruas estreitas
E, sob as sardinheiras,
Confia à arritmia
A surpresa que bate
Cada um dos dias.


Óculos escuros, fígado gordo, & etc, Lisboa, 2013.

segunda-feira, 24 de março de 2014

ANTÓNIO BARAHONA

[O MERGULHADOR TOCOU O FUNDO DO FUNDO]


O mergulhador tocou o fundo do fundo:
sai-lhe sangue dos ouvidos e das narinas;
o coração esmagado sob o pêso da água
fragmenta-se; a corola das algas
coroa o seu martyrio

Oh, a embriaguês da água é maior do que a do vinho!
O afogado, antes de morrer, não se aflige:
contempla o azul esverdeado, a cintilação,
os pormenores da luz quieta no movimento,
as mãos transparentes

O mergulhador continua a descer
para lá do fundo do fundo,
onde não há fundo: só desconhecimento de si próprio
e um mêdo infinito

À medida que vai descendo
o mergulhador sobe no abysmo.


Pátria minha (2.ª edição, integral e definitiva), Averno, Lisboa, 2014.

domingo, 16 de março de 2014

RUI CAEIRO

[O SILÊNCIO DA TRAVESSA]


O silêncio da Travessa pesa às suas putas como a qualquer passante.
Também elas esperam qualquer coisa, nada de especial, uma palavra. Não necessariamente um convite. Não uma palavra de salvação, ou de violência, ou da habitual e falsa cupidez. Uma palavra simples e banal, que não queira dizer nada mas que lembre que todos fazemos parte da mesma rua inóspita, que o mesmo é dizer da mesma terra obscura.


Travessa dos Remolares, Paralelo W, Lisboa, 2013.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

RUI PIRES CABRAL

CIDADE DOS DESAPARECIDOS


Muitas vezes não amei Lisboa,
não soube amá-la ao anoitecer
dos dias úteis, quando era gasta,
parada e suja, e nos autocarros
quase vazios viajava de luz acesa
a entranhada tristeza do mundo
que foi a minha primeira e mais
precoce intuição. Grande cidade
dos desaparecidos, eu não tive
tantas vezes a saúde de gostar
dos teus pequenos jardins
abandonados. Quando nos cafés
já iam desligando as máquinas
e do outro lado da linha ninguém
voltava jamais a responder
como eu queria, quantas vezes
não pude achar o sítio e o sossego
para esquecer e dormir? Mesmo assim,
eu não te fiz justiça, Lisboa, quando
me deixei de ti: eu não era exemplo,
eu sempre estranhei um pouco a cama
da vida.


Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Longe da aldeia], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

JORGE ROQUE

A CELA


O problema não são apenas os senhores da escravatura. O problema é que os escravos se reconhecem como tal. Os senhores talvez se pudessem derrotar. Mas como vencer os muros de quem ignora a liberdade e dentro de si ergue a cela que o encerra?


Cão Celeste, n.º 4, Lisboa, 2013.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

MIGUEL-MANSO

BALADA DA RUA DAMASCENO MONTEIRO


ardia de amor pela casa
numa confusão de silêncios ou
dizendo de outro modo

afundava-se numa líquida recordação cardíaca

ocultos pólen pólvora fósforos
a má reputação dos dedos
paixão cartografada remota
toponímia de enganos

braço a braço crescia alto
o incêndio no interior do peito
deliberado ritual de lâminas e pele
a transparente certeza
da cicatriz

mas ardia de amor pela casa soturna
silêncio dando para o saguão luz muitíssimo
extinta por sobre a larga extensão destruída

morrer, principalmente de amor, é
uma compendiosa tarefa doméstica

dentro do coração antigo
serei breve


Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Contra a manhã burra], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

INÊS DIAS

[PASSOU DEMASIADO TEMPO]

"When someone is dying
there is no point in telling him about the snow."

IRIS MURDOCH

Passou demasiado tempo
desde o último fim do mundo.
Os mecanismos quebraram-se
e sobram agora marés confusas,
países de fronteiras esmaecidas.

Visto de cima, o homem
é esta matéria mínima,
insecto negro de patas para o ar,
brincando a haver deuses
que o contemplem ainda.
(A noite toda no lavatório
branco da vida,
à espera que algo desça
e lhe devolva contornos,
uma escala compreensível.)

Mas os deuses despiram Orfeu
da sua curiosidade,
dobraram sombra sobre
sombra numa cadeira
antes de fecharem a conta.

Ao fotógrafo, deixaram
apenas um travo amargo
em jeito de temperatura.


Tempos vários, Paralelo W, Lisboa, 2014.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

ALBERTO PIMENTA

VEJO


vejo
a pequena suja
a brincar na rua
com os cagalhões dos cães

não digo que seja sublime mas
como tudo
não deixa de ser interessante

alguns
parecem as
galáxias
mais longínquas
ou os berços
de estrelas
Barnard 68
tudo claro
mérito dela
e das suas mãos

gostava também
de ir brincar com ela

mas
quem sou eu para isso
já nenhum poeta o faz
só uma ou outra das 4.370
inspecções-gerais da vida corrente

já nenhum poeta o faz
nem os maiores
nem os simplesmente grandes
e menos ainda os pequenos

já nenhum poeta o faz


De nada, Boca, Lisboa, 2012.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

MANUEL DE FREITAS

STRELA NEGRA

para o Rui

Sabemos, há muito tempo,
que são cada vez mais frias
as manhãs. E, no entanto,
teimas em inventar
um biombo para a morte,
um rosto de arame
que conhece os últimos porteiros.

A suave desrazão daquele
charro fez-nos perceber
subitamente tudo,
enquanto confundias
o Largo do Conde Barão
com a Praça do Rossio
e a poesia
com o corpo mais ausente.

Mas vou ter de concordar
que era alegre, demasiado alegre,
a música dos táxis nessa noite:
30 de Dezembro de 2004.


Cretcheu Futebol Clube, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

MARGARIDA FERRA

ARROIOS


Não há passeio, é uma ponte
de metal verde que nos leva
a casa. Rente ao edifício,
arrancaram as pedras
da calçada – uma a uma.
Escavaram a terra
que ficou, depois.
Os prédios (o número dezoito
e os outros pares) parecem
aguardar o transplante.
Mostram os canos
descobertos: raízes
que os ligam,
a trama subterrânea da cidade.


Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Curso intensivo de jardinagem], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

RUI CAEIRO

[ENTRE OUTRAS COISAS QUE OS PAIS SÃO]


Entre outras coisas que os pais são ou costumam ser, o meu pai foi, tem sido, um problema para mim. À semelhança, de resto, do que eu próprio devo ter sido, e penso que continuarei a ser, para ele: outro problema.

Até aqui, nada do outro mundo, eu diria, nada que esteja fora dos moldes comezinhos e tradicionais em tal matéria.

Um problema a resolver, ou tão-só a controlar. Ou tão-só a contornar. Muito bem.

E devo até reconhecer que as coisas entre nós não melhoraram, nem sequer se alteraram significativamente nos últimos anos, isto é, nem com a velhice dele, primeiro, nem depois com a minha.

Nem com a circunstância de a morte dele ter acontecido há já uns pares de anos.


No Martim Moniz com o meu pai, Landscapes d'Antanho, O Homem do Saco, Lisboa, 2013.