quarta-feira, 28 de outubro de 2009

RUI MIGUEL RIBEIRO

X - O CORAÇÃO


O coração assemelha-se
a quanto posso perder
– tudo – junto a ti.
Sob o sinal de anos pretéritos
a sós com o meu olhar
a colecção das nossas perdas
ganha um involuntário valor
sobre estes dias.

Adere a cada hora
um significado como uma forma
de gravidade sobre o tempo.

Hoje sei como se perde
a noite e nela a vida; como se
decompõe entre a luz e a sombra
onde um corpo espera.

Não é a ausência, tão-só o amor
quem faz esta vigília, esse excesso
que é também abreviatura
e aqui termina.


XX Dias, Averno, Lisboa, 2009.

domingo, 25 de outubro de 2009

RUI CAEIRO

[AQUI NA PRAIA DA TORRE PERTO DO LUGAR ONDE]


Aqui na Praia da Torre perto do lugar onde
mataram Gomes Freire de Andrade
aqui onde o Tejo por fim se rende e
se faz mar curvado sobre a areia
apanhando conchinhas e distraído
saboreando palavras lavadas e re
lavadas pela água das marés tais como
praia luz água nitidez búzio manhã
Deus ou Sophia de Mello Breyner Andresen


Olhar o nada, ver a Deus, Averno, Lisboa, 2003.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

VITOR SILVA TAVARES

[TENHO PARA MIM]


Tenho para mim que poeta não é apenas aquele que escreve poemas e veste farda de serviço – isto para não dizer que ele há por aí muito boa gente (força de expressão) que redige o que se convencionou chamar de "poesia" e está a anos-luz de saber habitar poeticamente o dia, de vivenciar o magma poético (seus infernos reais, seus paraísos não tanto) sem a bengala do escapismo literário e seus adornos embusteiros.


Tanto Fogo e Tanto Frio: o Último Sonho de Olímpio (com Alberto Pimenta), & etc, Lisboa, 2008.

domingo, 18 de outubro de 2009

VÍTOR NOGUEIRA

GELO


Agora é apenas um café com paredes adornadas,
imagens retratando destemidos ancestrais.
O tempo foi passando, não foi? Um acidente
em câmara lenta a uma escala cataclísmica.

Grande parte daquilo que fazemos é construir
memória, uma promessa frágil ao futuro.
E pensar que na vida acumulamos tanta coisa,
sobretudo se por hábito não deitamos nada fora.

Mas ninguém pode travar a grande máquina.
Diz-se que a viagem conta mais do que o destino.
Perscruto as águas envolventes, em busca de
sombras, enquanto o mar revolto bate no casco.


Mar largo, & etc, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

JOSÉ MIGUEL SILVA

VIA DI CITTÁ


Nas cidades educadas, como Siena,
as casas fazem os homens e não
os homens as casas; as ruas param
para os deixar passar e eles passam,

como lhes cumpre, sem protestos
de pilão e camartelo, agradecidos,
deixando atrás de si o palco limpo
para a gala dos vindouros e seus actos.

Suas sombras acomodam-se à virtude
de passar sem aparato. Não se toldam
com licores de petulante afirmação,
não arruínam, por despeito, a perfeição.

Limitam-se a passar, a transferir
duma gaveta para outra as escrituras,
o afecto dos contratos. E nisso mostram
tudo o que, na vida, é possível aprender.


Telhados de Vidro, n.º 11, Averno, Lisboa, 2008.

domingo, 11 de outubro de 2009

MIGUEL MARTINS

[SE TIVESSE CARTA]


Se tivesse carta, faria sentido comprar um automóvel; poderia, então, meter o sofrimento na mala e abandoná-lo num outeiro.


Cirrose, Fenda, Lisboa, 2003.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

JOSÉ RICARDO NUNES

ARREDORES DE PORTALEGRE


Um dia o tempo
será um único
dia. Terei as veias
fechadas, mar
de pó afogando
raízes. E a luz
do ocaso não entrará
no verde e no granito
desta imagem
a que me furtei,

arredores de Portalegre.


Apócrifo, Deriva, Porto, 2007.

domingo, 4 de outubro de 2009

HENRIQUE FIALHO

SUGESTÃO


mata-me o ego
e recordarei contigo
a memória de havermos sido
um vácuo sem fundo
numa vida sem fim


Entre o Dia e a Noite Há Sempre um Sol que se Põe, edição do Autor, Rio Maior, 2000.