domingo, 30 de dezembro de 2012

ROSA MARIA MARTELO

RESTITUIÇÃO


Bicéfalo e eu acabáramos de regressar do nada graças a uma improvável brisa, quando aquela mulher, que a avaliar pelo recorte e nitidez das roupas certamente estaria viva, se dirigiu a nós de sorriso constrangido, a saber se podíamos indicar-lhe o caminho para a Rua do Mundo.
 
Se deus gostasse de máquinas fotográficas, talvez nos tivesse reunido num instantâneo embaraçoso: uma mulher viva e sem sombra e as sombras sem vivos que nós somos, os três juntos à beira nada. Mas era preciso que deus nos visse, coisa de que duvido. De qualquer modo, havia demasiada luz para uma boa fotografia.
 
Dissemos-lhe que não, que não éramos dali, não sabíamos o caminho. E para que a mulher pudesse encontrar a rua procurada, logo desaparecemos levando connosco toda a brancura à nossa frente, esse grande vazio que ela tranquilamente não via.


Nós, os desconhecidos, org. de Daniela Gomes e Rui Pires Cabral, Averno, Lisboa, 2012.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

INÊS DIAS

PRESÉPIO TRADICIONAL DA NAZARÉ


Porque o amanhã já começou.
Veio com um telefonema,
sem deixar dormir a véspera
ou sonhar uma espera diferente.

Instalou-se de costas para nós,
mais o seu cortejo de sintomas:
pastoras de rigoroso negro
como velas apagadas,
um pouco de sangue no nariz,
mãos afinal iguais, vazias.

Já não sobra tempo, no meu corpo,
para outra vida: se lhe forçassem
uma canção de embalar, seria apenas
o arco exacto entre o cemitério cobiçado
pelas ondas e a beleza desamparada
de um penhasco a desmoronar-se
eternamente sobre o mar. E eu no fundo.


Merry little Christmas, Averno, Lisboa, 2012.

domingo, 16 de dezembro de 2012

MANUEL DE FREITAS

BWV 992

para o José Carlos de Almeida Gonçalves (in memoriam)

Lembro-me bem dessa tarde, junto à piscina em ruínas, e com a Graça ao lado. Nunca me tinham perguntado se escrevia. Disfarcei o melhor que pude o embaraço, mas a dúvida era recíproca. Anos mais tarde, esclarecemo-nos mutuamente. Tive a franqueza de lhe dizer pouco interessantes as prosas e poemas que me mostrou; e ele foi grande ao ponto de me elogiar como poeta, sem sombra de ressentimento. Nesse ponto, aliás, nunca houve equívocos. Não partilhávamos os mesmos romancistas, nem compositores (embora nos unissem Bach e Brahms, entre outros), mas em poesia, regra geral, estávamos de acordo. Que pena, tio, não gostar de José Miguel Silva, pensei eu – minutos antes da cremação do Sérgio Eloy.
 
Ainda assim, e dada a enorme diferença de idades, não é comum haver tantas sintonias. Teria cada um de nós o seu Bach (de Karajan o dele, de Leonhardt o meu), mas ele era-nos igualmente imprescindível, sem que acreditássemos no seu ou em qualquer outro Deus. E seríamos, seremos ainda, os únicos naturais do Vale de Santarém a amar a música de Sainte-Colombe, à qual chegámos, como convém, solitariamente.
 
 
Cólofon, Fahrenheit 451, Lisboa, 2012.

domingo, 9 de dezembro de 2012

JOÃO ALMEIDA

DIÁRIO DE RUM


Enquanto espero a subida das águas
Vou construindo de cabeça
O poema deste dia

Prédios para deitar abaixo
Escalpes de negócios clandestinos
Cães que hesitam a travessia

Os bárbaros chegaram ao governo
Falam línguas.


Telhados de Vidro, n.º 17, Averno, Lisboa, 2012.

domingo, 2 de dezembro de 2012

ANTÓNIO BARAHONA

OS PASSOS DO COELHO


Ontem, 15 de Setembro de 2012,
efectuou-se uma manifestação pacífica
do povo português, que, bem domesticado,
não partiu montras, nem agrediu a bófia,
talvez porque a fome ainda não é muita.

Mas houve uma excepção:
um jovem de vinte e um anos
partiu, aos cacos, a realidade em foco
e agrediu a própria vida
imolando-se pelo fogo.


Telhados de Vidro, n.º 17, Averno, Lisboa, 2012.