domingo, 28 de junho de 2009

RUI PIRES CABRAL

«É BOM VIVER NA TERRA?»


No parque, sobre a relva,
onde é tudo tão difuso,
eu não tenho relação
com a minha vida. Indistinto
entre as dezenas de pontos

que um mestre desconhecido
distribui por acidente
na tela crua da sorte,
não tenho nome ou idade,
nem sequer um coração

para sofrer outra ofensa:
nunca desci ao inferno
de um amor desenganado,
nada perdi que me fosse
precioso ou necessário

e de resto não conheço
os quatro cantos do medo,
nem tão-pouco me pertence
este modo de estar só
que inventei sem querer.

De seguro, por agora,
só tenho o corpo que ofereço
ao calor da primavera –
e nem me custa ser eu, se sou
também qualquer homem

de qualquer tempo e lugar
que alguma vez se deitou
sem cuidados ou remorso
entre as árvores enfeitadas
pela breve luz da tarde.


Oráculos de cabeceira, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

A. M. PIRES CABRAL

AS PROSTITUTAS


Naquele tempo,
elas desciam à vila, as prostitutas –
a única saída,
exactíssima resposta para a nossa
angústia seminal acumulada.
Vinham de Vale da Porca, ou outra
terra assim pasmada.
Traziam na cabeça lenços garridos,
na carteira de mão a triste história:
a sedução primária, a miséria espessa,
mas jamais o vício mercenário.
Nas eiras recebiam nossas águas,
de permeio plantados como reis.
Procuravam lisonjeiras acertar
seu êxtase fingido com o nosso.
Beijavam-nos, diziam: tão novinho!
Suportavam-nos insultos e arremessos.
Com mão experiente (mas não habituada)
guiavam-nos na bela, impreterível,
urgente aprendizagem,
concediam-nos crédito e carinho –
as tãos castas mulheres,
as prostitutas.


Antes que o Rio Seque (de Algures a Nordeste), Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

domingo, 21 de junho de 2009

MIGUEL-MANSO

CONTINUAÇÃO DE JEAN NICOT


sou dentro de mim o que quer fugir
embora vá recusando a cada bafo
o panorama dos astronautas

tiro notas
dos calendários gigantes
das marés do sol e da lua
do rasto agrícola das nossas mãos
sobre a mesa

de madrugada
remo como exilado inca
em direcção à luz

se ainda me for fácil mentir direi
é afinal a única substância do poema
este cigarro entre estrofes


Contra a manhã burra (2.ª edição, revista), Mariposa Azual, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

CARLOS ALBERTO MACHADO

[NÃO DISSE AS PALAVRAS CERTAS]


Não disse as palavras certas
faltou-me o tom e o talento
não tires da minha boca
as palavras que não ouviste
a responsabilidade é tua já te disse
organiza como quiseres as palavras
e os silêncios
o ritmo certo da morte escolhe-o tu
a minha boca continua fechada.


A Realidade Inclinada, Averno, Lisboa, 2003.

domingo, 14 de junho de 2009

MIGUEL MARTINS

[QUEM ACHA QUE A VIDA É PARA LEVAR A SÉRIO]


Quem acha que a vida é para levar a sério
deve andar convencido de que a morte é a
brincar.


Penúltimos cartuchos, Tea For One, Lisboa, 2008.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

PEDRO BRAGA FALCÃO

[A SINCERIDADE DESSA GATA]


A sinceridade dessa gata,
de um tigrado quase infinito,
delicada como alegre jogo
de crianças adormecidas,
lembra-me, à tarde,
quando ouço pianistas,
uma única varanda
e uma única janela.
Como solstícios de inferno
o repuxo abre-se em luz.
Tomara o canto fosse nosso
sem searas e sem ciprestes.


Do Príncípio, Cotovia, Lisboa, 2009.

domingo, 7 de junho de 2009

VITOR SILVA TAVARES

[EU QUERIA SER DO PEN]


[...]

Eu queria ser do pen,
eu queria ser do grémio.
Enfim, ser daqueles men
tecaptos do prémio.

Eu queria ser, já viram,
poeta sublime.
Então, jarryram?
Eu rime.

[...]

Êxtases e delírios
volteando em blue
quem os tem tire-os
e meta-os no cu.


Poesia em Verso (com Rui Caeiro e Afonso Cautela), Livraria Letra Livre (depositária), Lisboa, 2007.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA

COM A MINHA MÃO


Com a minha mão que ainda escrevia, toquei a
sua face
e estremeci.

Quebraram-se os cálices, os espelhos, as lâmpadas
que iluminavam a minha idade,
a minha vida.

Alguém gritou, de repente,
e a sua voz profunda golpeou para sempre o
adormecimento das casas.

O cisne disse a última palavra no lago à
deriva,
e o tigre preparou o salto quando nos seus
olhos se acenderam dois archotes.

Os cordeiros do quinto mês
procuraram, em pânico, os redis do anoitecer.

Com a minha mão que ainda ardia, toquei
a sua lã,
que mais tarde teria a cor do sangue,
a cor do medo na sua alma.

Caminhei pelos campos vermelhos,
pouco depois do extermínio.
Parei, perplexo, sem dizer nada,
sem ser capaz de olhar outra vez o coração das
trevas.

Estás perdido, ouvi ao longe,
à saída da floresta,
estás perdido nos labirintos que te perseguem
durante o sono.

Com a minha mão que ainda arde, escrevo,
esqueço,
sou aquele que parte.


Esta Voz É Quase o Vento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.