segunda-feira, 30 de novembro de 2015

PAULO DA COSTA DOMINGOS

[ERA UM PAÍS, UM CORPO]


Era um país, um corpo,
uma cidade de ossos
calcinados, onde nem cães
metiam o dente.

E o corpo é um cristal lívido
no centro d'uma praça, deportado,
límpido, onde nem os homens
se atrevem.

A cidade aposta-se toda
na espessura do sono, na
candura banal, vulgar,

do país em ruína:
impaciente.


Cal, Averno, Lisboa, 2015.

sábado, 28 de novembro de 2015

ISABEL NOGUEIRA

[TIROU DO BOLSO O CANIVETE]


Tirou do bolso o canivete que a mãe lhe oferecera aos seis anos.
Acto naturalmente impróprio, a respeito do qual seria desnecessário
ajuizar.
Abriu-o, passou ao de leve os dedos pela lâmina, e descascou a maçã.

Os olhos nunca saíam do barco. Nem do mar.
A prática fazia-o retirar a casca à fruta sem necessidade de olhar.
Era tudo uma questão de hábito e de motricidade fina.


Peso pluma, Paralelo W, Lisboa, 2015.

domingo, 8 de novembro de 2015

A. M. PIRES CABRAL

[VOCÊ ENTENDE, CASTEL?]


— Você entende, Castel? Isto significa que há de facto uma lei do mais forte que rege a vida em qualquer parte do planeta, seja numa aldeia ignorada da montanha ou no palácio presidencial. E que uma pessoa pode ser muito civilizada e urbana, mas, chegado o momento de lutar pela sua sobrevivência, se tiver necessidade de ser cruel, será cruel. Era só isto que eu queria dizer.


Sancirilo (3.ª edição), A Ronda da Noite, Vila Real 2015.