quinta-feira, 26 de julho de 2018

MANUEL RESENDE

VOLTAR PARA CASA


Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
E seguir o rasto das árvores no chão,
Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos
E as mãos nos bolsos como um apontamento antigo?
Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um,
E súbita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca,
Pronta a saltar e a arder todo o corpo?
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa,
Cabisbaixa?


Poesia reunida [de Em qualquer lugar], Cotovia, Lisboa, 2018.

domingo, 15 de julho de 2018

ANTÓNIO BARAHONA

E, A PROPÓSITO DE VIAGENS


E, a propósito de viagens, recordo um serão em Sawa-Sawa (Moçambique): depois de longa caminhada pelo mato, eu deitara-me na esteira, exausto, ao lado do meu Shaykh que, à luz duma lamparina fumegante, derretia rapé sob a língua e murmurava uma oração.
Emudeceu, de súbito, satisfeito com o som do que dissera. E eu adormeci.
Acordei passados poucos minutos, com a sua voz a asseverar-me num tom deveras afirmativo:
— Só os homens que viajaram muito e correram mundo podem ser assim tão amigos e íntimos, como nós somos!
Eu nem sequer achava que tivesse viajado muito e comecei a imaginar que, com certeza, ele teria viajado muito mais.
E perguntei-lhe, curioso, após narrar-lhe as minhas vagamundagens:
— E o meu Pai, até onde foi?
— Quem? Eu? — retorquiu o meu Shaykh, surpreso. — Eu nunca saí desta aldeia!


Aos pés do Mestre, Averno, Lisboa, 2018.

domingo, 8 de julho de 2018

JORGE ROQUE

ESTUDOS LITERÁRIOS


Quando morrer vou deixar vários pares de sapatos novos, arrumados nas caixas, absolutamente por usar. Não será difícil encontrar tamanho de pé para o meu número, é aliás dos mais vulgares. Mas haverá outro problema: os sapatos são todos iguais, três ou quatro pares do mesmo modelo, variando quando muito a cor do cabedal e atacadores. Perfil neurótico, obsessivo, compulsivo, sei lá que mais o compêndio tem para mim reservado. E no entanto, bem mais simples, a razão era a dificuldade de encontrar sapatos que não me apertassem os pés.


Cão Celeste, n.º 12, Lisboa, 2018.