sábado, 29 de janeiro de 2011

INÊS LOURENÇO

VELHO CELULÓIDE


Caixeirinhos de Grandela,
costureirinhas da Sé, futuras
mães de família obesas, trinados
de meninas da rádio, saloias
românticas, lavradores de
cena, pais tiranos, casas
apalaçadas, serviçais complacentes,
negreiros de boa alma, algumas
tabernas e algumas guitarras.

Pontos culminantes:
o triunfo internacional do
artista ignoto à frente de um
postal do Arco de Triunfo, da Torre
de Londres ou de alguns
arranha-céus. Os beijos
à cinema, seguidos de grandes
planos da paisagem no Fim
que acaba bem o ecrã a preto
e branco em enorme letra gótica,
eles casam.


Poemas com cinema [de Logros consentidos], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

domingo, 23 de janeiro de 2011

ROSA ALICE BRANCO

NAS FOLHAS DE CHÁ


Estamos de passagem mas em caso algum
esqueceremos o orvalho. Os nossos poros
ossificaram o sangue, é o que a terra diz:
– o alcatrão não é o meu vestido de luto,
mas a pele irrespirável da minha carne.
Agora quem vai querê-la por noiva?
As grinaldas estão cheias de poeira e a
marcha nupcial desafina as estrelas.
O sol feito de gasolina na nossa pele
de verão apodrece depressa nas rugas.
Ainda ris por entre as frestas negras
e deixas entrever outro destino nas folhas
de chá. Mesmo assim o teu cadáver
é belo entre as flores do campo que resta
e o fumo do comboio que te cinza.
O orvalho é uma palavra dócil. Às primeiras
horas quando os despojos se deixam invisíveis
ainda me extasias como a uma princesa a florar
a erecção inicial antes da radiografia pulmonar.
Não choramos por nós quando te morremos?


Saudade: revista de poesia, n.º 12, Associação Amarante Cultural, Amarante, 2010.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

FERNANDO ECHEVARRÍA

O VAGAR FOI DESCENDO SOBRE AS CASAS


Tinham a luz retida no outeiro
e a tarde de Março a sustentá-las,
envoltas no esplendor do seu sossego.
Em baixo, o rio quase parava.
Era o mar a subir, mas muito lento.
Como se houvesse pelo azul das águas
um defluxo recíproco movendo
luzes poentes e paletas gastas,
onde já se destaca a de ouro velho.
E, depois, o vagar ainda baixa,
enquanto um arrepio arrisca certo
uma ríspida ruga, apenas clara
porque a secunda o céu azul. O resto
deve-se às sombras que se alongam, graças
ao contraluz desfigurando o outeiro.


Saudade: revista de poesia, n.º 12, Associação Amarante Cultural, Amarante, 2010.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

HELDER MOURA PEREIRA

BROTHERS ON WHEELS


Viajas um pouco acima
da fixa viagem
da terra, eu sou
o teu amigo, o irmão
que nunca saiu
e regressou.
Mar e mãe se enredavam
por coisas de sangue
e confronto, presos animais
de fumo e noite.
E motores ao corpo
dos heróis, depressa
passam, facas
na pele ardendo.
Eu visto
as tuas camisolas
e a vida que viveste
já a tenho. Quero
que o teu murmúrio
me perturbe, a voz
é um ponteiro
sobre o tempo, os peixes
não deixam de bater
nos vidros.


Poemas com cinema [de Esta passagem], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

JORGE DE SOUSA BRAGA

MORTE EM VENEZA


De muitas coisas se pode morrer
em Veneza
De velhice de susto
de peste

ou de beleza


Poemas com cinema [de O poeta nu], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

MANUEL ANTÓNIO PINA

A ILHA NUA
(Depois de ter visto o filme «A ilha nua», de Kaneto Shindo)


animal passageiro a quem já sobra
dentro da boca o susto da viagem
tu que com cuspo aprendes a paisagem
e és o juro que a usurária cobra

animal educado a quem a dor
repete intimamente e habitua
e tão intimamente continua
a breve continência exterior

tu que passas sem pressas sem assombros
e que afogas na sede que te apresa
teu líquido senhor que pesa pesa
nos teus cristóvãos portugueses ombros

tu que com sono a glabra ilha lavras
e com o sonho avidamente a usas
na dura arquitectura das palavras
tu que tudo te dura das palavras


Poemas com cinema [de Ainda não é o fim nem o princípio do Mundo calma é apenas um pouco tarde], org. Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

MANUEL DE FREITAS

5 010509 001229


É o que se chama um "higiénico": latas,
comida feita e embalada, whisky,
cerveja ou vinho (quando não os três).
Deve beber-lhe bem e mudar pelo menos
duas vezes por semana a areia ao gato.
É tímido, inseguro e – por isso mesmo –
extremamente rápido a arrumar as compras.
Vai pagar outra vez com cartão. Hoje
parece mais triste, talvez por no seu íntimo
saber já que vai escrever um poema
sobre mim, mera ajudante de leitura
dos códigos fatais em que cada um se expõe.

Mas para quê tantas palavras? Bastava-lhe
ter dito que me chamo Isilda
e que a vida que tenho não presta. A dele,
suponho, não será muito mais feliz.
Escusava era de maçar a gente
com o que sofre ou deixa de sofrer.

A minha sabedoria é muda, desumana:
um dia enlouqueço ou fico para sempre presa
a um pesadelo sentado, com barras transparentes.


Isilda ou a nudez dos códigos de barras, Black Sun Editores, Lisboa, 2001.

domingo, 2 de janeiro de 2011

LYRICA