quarta-feira, 31 de julho de 2013

BEATRIZ HIERRO LOPES

VERMELHO


Não sei de músicas que acalmem os pássaros, nem sei de pássaros que amanheçam no sangue ou de beijos dados no pulso para chegarem ao coração. Não sei de nada que tenha voo, cor de tempo – vermelho, sempre vermelho, como odeio vermelho –, ou de como se nasce das pedras. Muito embora tenha caminhado sobre elas, pressinta cores dentro do peito e goste de olhar muito acima da copa das árvores só pela ideia de que, ao contrário dos pássaros, as estrelas me durarão o futuro todo. E se me falam de músicas, sangue ou beijos, sorrio e fecho o rosto, porque nunca gostei do que não me durasse mais do que este instante.


É quase noite, Averno, Lisboa, 2013.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

NUNO COSTA SANTOS

ÀS VEZES É UM INSECTO QUE FAZ DISPARAR O ALARME


Às vezes é um insecto que faz disparar o alarme
um zumbido que detona o coração.

Às vezes é uma vírgula que tomba na frase
uma cabeça que desaba num ombro qualquer.

Às vezes é um fósforo
que resplandece venturosas entradas
no dicionário dos dias.

Às vezes nem isso.

Às vezes é um sopro que revira o mundo
no ventre do tempo
como quem se prepara para uma nova vida.


Resumo: A poesia em 2012 [de Às vezes é um insecto que faz disparar o alarme], org. de Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Documenta/Fnac, Lisboa, 2013.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

JORGE ROQUE

FOME SEM SENHOR

 
O poder é uma fome sem senhor. Duas mandíbulas só dentes, voracidade e estômago. Uma certeza cujo sentido é não parar de mastigar. Não devora apenas os medíocres e os fracos, importa que o entendas. Devora todos por igual.


Cão Celeste, n.º 3, Lisboa, 2013.

domingo, 14 de julho de 2013

MIGUEL MARTINS

[ERA O INVERNO DE 69]


Era o Inverno de 69.
Havia notícias como há sempre,
e suponho que fizesse frio.

A parentela acorria,
acotovelava-se ao redor da cama,
fingia estar feliz, ou talvez estivesse,
sabe Deus porquê. (Ao mesmo tempo,
abrigava-se da chuva.)


Nunca fui tão pequeno, nem tão pouco
parvo. A partir de então, industriaram-me
nas artes e ciências de estar vivo,
excepto a respiração, que é oferecida:


comer, roubar, fugir,
ser intramuros e existir na gleba,
e desistir
silenciosamente.


Sim. Foi, para mim, o Inverno dos Invernos.

E não há meio de acabar.


Resumo: A poesia em 2012 [de A metafísica das t-shirts brancas], org. de Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Documenta/Fnac, Lisboa, 2013.