segunda-feira, 31 de outubro de 2011

JORGE GOMES MIRANDA

ETERNAS PERGUNTAS


Não mais as minhas mãos
penteando os teus cabelos.

Não mais o silencioso som de chegares
a cadeira para a mesa.

Não mais o gesto de colocar-te o guardanapo
de papel ao pescoço.

Não mais o cortar o peixe em pedacinhos,
retirar as espinhas.

Não mais as eternas perguntas entre
mãe e filho.


Requiem, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.

domingo, 30 de outubro de 2011

E. M. DE MELO E CASTRO

CRÍPTICA


Para quem não sabe ler
Toda a escrita é críptica

O alfabeto cirílico é críptico para mim

Os ideogramas chineses ou japoneses
São igualmente crípticos (para mim)

Para os economistas
A poesia é críptica

Para os imbecis
A inteligência é críptica

Para os cegos de nascença
A cor é críptica

Para todos os homens
A sua vida é críptica

Para os vivos
A morte é críptica

Para os mortos
O que será a morte?


No limite das coisas, Campo das Letras, Porto, 2003.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

MIGUEL MARTINS

4 – DA LITERATURA



Gosto de pessoas que não escondem as suas fragilidades. Não precisam de usá-las na lapela do casaco, é claro, mas que não as escondam se calharem em conversa. Fobias, egoísmos, incompetências, doenças psiquiátricas, mendicidades, etc., são o melhor que temos para nos dar. Porque o mais é falso ou não é particularmente nosso. O Pierce Brosnan e a Tyra Banks não existem; a nouvelle cuisine é uma cagada; o Fernando Mendes e o peixe frito são mesmo muito bons. Sou muito melhor escritor do que o Hemingway. Quase toda a gente é muito melhor escritor do que o Hemingway. Não percam tempo com o Hemingway se tiverem uma bola, alguns amigos e um jardim onde jogarem. Não percam uma oportunidade de suar. O suor é sempre bom, a menos que se sue por dinheiro. Fumem. Fumem muito. Os dentes castanhos são melhores do que os brancos. Melhor do que os dentes castanhos só não ter dentes nenhuns mas ter quem nos corte maçãs e queijo da ilha aos bocados pequeninos. Que se foda o Hemingway.


Lérias, Averno, Lisboa, 2011.

domingo, 16 de outubro de 2011

LUIS MANUEL GASPAR

[«SOUBE ENCONTRAR NO AREÃO A FLOR EM TRANSE.»]


«Soube encontrar no areão a flor em transe.»
e apontaste o ventre aberto da ondina:
carnagem crua te enquadrava, laminosa,
a face fria com a nuvem de falenas,

um relâmpago no estômago, e essa ombreira
pálida à mercê da lamparina; ovíparos
recados sob estacas, e tripas, e folhas
e escamas também. Engastado à tua voz,

«Toca-me os olhos com as pontas, sem a sombra
que de repente se enrolou entre os meus passos.
Vê, sob os círculos do peito, o peixe negro:
morde, puxa, rasga a pele do braço avesso»

E há tempo à justa pra empalhar outra corola,
o laço escuro a ecoar a trovoada


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

domingo, 9 de outubro de 2011

RENATA CORREIA BOTELHO

PALO SANTO


fendiam o castelo e o nosso palco, em madeira,
gotas temíveis, prontas a molhar de incerteza
a mala gasta do palhaço, o fato de trapezista
que se equilibrava a custo na solidão do cabide.

fizemos uma roda e uma chama lenta, como mandam
os mais fundos preceitos da magia, calámos
baixinho todas as vozes, deixámos aos pássaros
e ao palo santo a decisão suprema daquela noite.

nada sabia eu, até ali, da alma do fogo abrindo
caminho entre as intimações da chuva. e o céu
vergou-se, num sopro, a um rasgo de sol, que trago
nestes olhos entretanto regressados à borrasca.


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/ Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

MARIANA PINTO DOS SANTOS

4.




Escreveste há tempos numa carta para ninguém «pensei que sempre estarias aí». Agora sabes que não há presenças perenes nem ausências definitivas. Basta folhear as páginas dos livros para escutar as conversas entre poetas, um diálogo tímido que se trava e acelera no excesso que não cabe em lado nenhum. Oferecem-se uns aos outros as mais brutais ou gentis palavras. Palavras velhas como o mundo, tantas vezes ditas e escritas que dele se separaram há muito, mas às vezes voltam para o saudar. Perdem-se, encontram-se e perdem-se e encontram-se. E assim por diante.


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/ Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

sábado, 1 de outubro de 2011

RUI PIRES CABRAL

O CABO DOS DIAMANTES VISTO DE POINT-À-PIZEAU


para o Luis Manuel Gaspar


A água-forte com jangadas
surge aqui reproduzida
por gentileza dos Irmãos
Maggs, de Londres:
....................as cores
já desbotaram e há pontos
de acidez na margem esquerda –
mas como lhes agradeço
a gentileza!
..........Os inimagináveis
Irmãos Maggs, de Londres:
quem eram, de que morreram
(seriam mais que dois)?
....................O tema
tem a urgência de um apelo
à evasão – é como sair à noite
num país desconhecido,
....................tanto mais
que as circunstâncias, nos passeios
junto ao rio, atiçam o tédio
nativo sob o chuvisco
de Março
..........e nada se compara
em mistério e sedução
ao Cabo dos Diamantes
visto de Point-à-Pizeau.


Piolho, n.º 6, Edições Mortas/Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.