quinta-feira, 30 de abril de 2015

DAVID TELES PEREIRA

BOZE IGRZYSKO


Contam que é o reino mais frio da terra.
Biblioteca de pretéritos em vermelho-mudo
sob os longos olhares de uma sereia esquecida,
ferida no crepúsculo deste morder invernal.

Diz-se por aqui que a verdadeira igualdade
mora no cemitério e hoje o meu corpo dorme
por todas as pedras, com o círculo quebrado
da bem ordenada coroa. Que poder tão inútil,
cinco soberanos incapazes de falar a verdade:
nos dedos uma folhagem de astros, mas na boca
o sabor negro e persistente desta história inabitável.

Contam que é o reino mais frio da terra
e é bem possível que o seja.
Como aquela palavra, a mais perfeita,
uma sílaba de lábios abertos para a névoa
e um toque de língua no tecto da voz.
Daqui nunca ninguém saiu vivo a não ser em sonhos
e, claro, como sempre se ouviu,
não é saudável engolir mortos sem os mastigar primeiro.


AA. VV., Quarto de hóspedes, Língua Morta, Lisboa, 2013.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

RUI CAEIRO

TUBARÕES


Há nos mares cerca de trezentas espécies diferentes
todas devidamente armadas com os mesmos dentes
(sobre o que se passa em terra não há estatísticas)


Deus e outros animais, Averno, Lisboa, 2015.

domingo, 12 de abril de 2015

A. M. PIRES CABRAL

O POETA


[...]

O Poeta parecia finalmente mergulhado em paz interior, arduamente conquistada. Os seus lábios, ainda enamorados do verbo, não cessavam de mover-se: saboreava desse modo, imaginei eu, a doce acalmia que sobrevém a um parto bem-sucedido. Eu olhava embevecido e via naquele mover de lábios o sorriso cansado de uma puérpera que repousa no leito já com o recém-nascido nos braços. Coisa bonita de ver.

De súbito, os seus lábios começaram a mover-se mais depressa, com maior amplitude. "Vem aí outro poema!", pensei, excitado. "Eis que a força criadora se apossa de novo daquele espírito atormentado na perseguição do Belo." Temendo que se pusesse a levitar, senti-me tentado a segurá-lo por um braço, recomendar-lhe contenção, que estava num lugar público. Só não o fiz porque num sum dignus.

[...]

A navalha de Palaçoulo, Cotovia, Lisboa, 2015.