sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

ALBERTO PIMENTA

VEJO


vejo
a pequena suja
a brincar na rua
com os cagalhões dos cães

não digo que seja sublime mas
como tudo
não deixa de ser interessante

alguns
parecem as
galáxias
mais longínquas
ou os berços
de estrelas
Barnard 68
tudo claro
mérito dela
e das suas mãos

gostava também
de ir brincar com ela

mas
quem sou eu para isso
já nenhum poeta o faz
só uma ou outra das 4.370
inspecções-gerais da vida corrente

já nenhum poeta o faz
nem os maiores
nem os simplesmente grandes
e menos ainda os pequenos

já nenhum poeta o faz


De nada, Boca, Lisboa, 2012.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

MANUEL DE FREITAS

STRELA NEGRA

para o Rui

Sabemos, há muito tempo,
que são cada vez mais frias
as manhãs. E, no entanto,
teimas em inventar
um biombo para a morte,
um rosto de arame
que conhece os últimos porteiros.

A suave desrazão daquele
charro fez-nos perceber
subitamente tudo,
enquanto confundias
o Largo do Conde Barão
com a Praça do Rossio
e a poesia
com o corpo mais ausente.

Mas vou ter de concordar
que era alegre, demasiado alegre,
a música dos táxis nessa noite:
30 de Dezembro de 2004.


Cretcheu Futebol Clube, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

MARGARIDA FERRA

ARROIOS


Não há passeio, é uma ponte
de metal verde que nos leva
a casa. Rente ao edifício,
arrancaram as pedras
da calçada – uma a uma.
Escavaram a terra
que ficou, depois.
Os prédios (o número dezoito
e os outros pares) parecem
aguardar o transplante.
Mostram os canos
descobertos: raízes
que os ligam,
a trama subterrânea da cidade.


Em Lisboa, sobre o mar: Poesia 2001-2010 [de Curso intensivo de jardinagem], org. de Ana Isabel Queiroz, Luís Maia Varela e Maria Luísa Costa, Fabula Urbis, Lisboa, 2013.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

RUI CAEIRO

[ENTRE OUTRAS COISAS QUE OS PAIS SÃO]


Entre outras coisas que os pais são ou costumam ser, o meu pai foi, tem sido, um problema para mim. À semelhança, de resto, do que eu próprio devo ter sido, e penso que continuarei a ser, para ele: outro problema.

Até aqui, nada do outro mundo, eu diria, nada que esteja fora dos moldes comezinhos e tradicionais em tal matéria.

Um problema a resolver, ou tão-só a controlar. Ou tão-só a contornar. Muito bem.

E devo até reconhecer que as coisas entre nós não melhoraram, nem sequer se alteraram significativamente nos últimos anos, isto é, nem com a velhice dele, primeiro, nem depois com a minha.

Nem com a circunstância de a morte dele ter acontecido há já uns pares de anos.


No Martim Moniz com o meu pai, Landscapes d'Antanho, O Homem do Saco, Lisboa, 2013.