domingo, 29 de novembro de 2009

RENATA CORREIA BOTELHO

[JÁ NINGUÉM NOS TOCA À PORTA]


já ninguém nos toca à porta
a vender cerejas.

devíamos talvez lembrar
à terra o nosso nome

plantar sílabas frescas
que nos matem a sede

ter um pingo de esperança
na morte depois da vida.


Um circo no nevoeiro, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA

MARTÍRIO DE SÃO SEBASTIÃO


No canto esquerdo superior está suspenso
um anjo descido do céu para coroar
de glória o corpo martirizado do jovem
capitão da guarda pretoriana ao tempo
do imperador Diocleciano e apóstolo
da fé cristã fervoroso como se deixa
pela expressão facial adivinhar no quadro
feito por encomenda dos piedosos membros
da sacra confraria de São Sebastião
no ano de mil quinhentos e vinte e cinco
e comprado pelo grão-duque da Toscânia
muito mais tarde nos finais de Setecentos
para continuar na cidade de Florença
onde Sodoma, o pintor, o executou.


El Arte de la Pobreza: Diez Poetas Portugueses Contemporáneos (de O Rei de Sodoma e Algumas Palavras em sua Homenagem), org. José Ángel Cilleruelo, CEDMA, Málaga, 2007.

domingo, 22 de novembro de 2009

CARLOS POÇAS FALCÃO

AS MATÉRIAS


Pescadores à linha. Rapazes sobre as ondas
incessantes. Jogos atléticos nas praias.
O meu cansaço é grande, estou de um lado
onde o mundo quase pára, muito atento
à posição do sol: não quero que a sombra
se transforme em erro. Por esta humanidade
passa o vento, traz-me as alegrias saturninas
da grande distracção. Eu sento-me nas rochas
entre as madeiras velhas, as matérias.
Não há tristeza nisto? Como pode haver?
É um dia a descoberto para as maravilhas:
pranchas sobre as ondas, algas no anzol.


El Arte de la Pobreza: Diez Poetas Portugueses Contemporáneos (de Movimento e Repouso), org. José Ángel Cilleruelo, CEDMA, Málaga, 2007.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

FERNANDO GUERREIRO

CONVERSA ENTRE CONTEMPORÂNEOS / 9


As conversas entre contemporâneos assemelham-se
a encontros de náufragos: passam-se sempre debaixo
de água à espera da dor que permita que as palavras
ascendam à superfície. E no entanto mesmo os distraídos
reparam que uma feroz natureza cresce das bordas
da linguagem, exalando aromas que cada vez é
mais difícil interpretar à luz da literatura.
Haverá ainda alguém interessado em os respirar?
Também nós, relutantes jardineiros,
não nos aproximamos dos canteiros
e as flores que cultivamos,
colhemo-las antes de tempo,
só para, com o perfume,
não ter de aspirar a loucura.


El Arte de la Pobreza: Diez Poetas Portugueses Contemporáneos (de Grotesco), org. José Ángel Cilleruelo, CEDMA, Málaga, 2007.

domingo, 15 de novembro de 2009

RUI PIRES CABRAL

VILA REAL


para a Daniela e a Viviana

Estamos sentados entre o xisto e a caruma
no chão da montanha. Os choupos são uma impressão
riscada no cenário à nossa frente, mas nós temos as mãos ocupadas
com outros pensamentos. Às vezes era doloroso viver atrás
das montanhas, pressentíamos a distância do mundo como uma faca
e usávamos o mesmo gume para dividir entre nós
as enormes tardes de domingo.

Nós os três contra o ar duro do Marão, os braços em torno
dos joelhos. Quase uma imagem para a música das cassetes
que eu levava para todo o lado (alguma desenquadrada peça de Satie
entre Polly Jean e Tom Waits a uivar como um cão). Tínhamos vindo
à procura da neve debaixo dos troncos, atirámos pequenas pedras
às fundações do vale. E como parece branco e nítido o inverno.



Poemas de Rui Pires Cabral [de Música antológica & onze cidades], Oficina Raquel, Rio de Janeiro, 2007.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

JOSÉ AMARO DIONÍSIO

FINAL


Sente o coração bater contra o rio onde o rio já não existe. Que pode fazer um homem que desloca a fronteira nos seus passos? São sons que provocam corredores sem saída, e batem no ar, e roem, e voltam para trás, e recomeçam, e por cima há um odor a cadáver no céu em ruínas. Sim, nem de outrora um pouco de vida. É um esplendor de luto, ponto final. E isso paga-se todos os dias, mesmo quando o dia todo se gasta a fugir disso. No caminho taberna a taberna há sempre uma toalha ferida pelo exílio, e a proximidade das vozes só serve para esconder a manhã inútil. Quanto à literatura, francamente, o cheiro da montra não vale esta bifana em Vendas Novas. Acham pouco? Peçam duas.


Nada Serve, Averno, Lisboa, 2008.

domingo, 8 de novembro de 2009

MANUEL DE FREITAS

2009, PINA BAUSCH


«As eleições de domingo no Benfica
estão comprometidas; morreu
Pina Bausch, a coreógrafa alemã.» – foi assim,
de rajada, numa frase única a colar-se
ao vidro do táxi, que fiquei a saber da sua morte.

E tive pena, recordei enquanto não pedia troco
a tristeza feliz de a ver dançar Café Müller
há um ano, no tempo em que estávamos vivos.

Mas já não tenho poemas.
Nem mesmo para si, Pina Bausch.


Jukebox 1 & 2, Teatro de Vila Real, 2009.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

MANUEL ANTÓNIO PINA

TEORIA DAS CORDAS


Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste na alma),
no fundo da alma, e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música física
que só a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio,
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente ciente
de si, não haver resposta
nem segredo.


Atropelamento e Fuga, Asa, Porto, 2001.

domingo, 1 de novembro de 2009

SILVINA RODRIGUES LOPES

[POR MUITO QUE A TÉCNICA]


Por muito que a técnica seja importante para a construção de um poema, nunca o domina ao ponto de o integrar no modo de produção dos objectos mercantis.


"A Anomalia Poética", Telhados de Vidro, n.º 1, Averno, Lisboa, 2003.