terça-feira, 31 de maio de 2011

TIAGO ARAÚJO

(ESTUDO DO ROSTO)


espelho meu, quem sou
eu? não tenho tido tempo para deixar a barba por fazer.
quanto ao resto, tenho a cara de sempre,
a que muda com os climas, e a mesma
necessidade de aperfeiçoar a técnica do
auto-retrato, de forma repetitiva e sem paixão,
para reconhecer um rosto que muda
com a luz e determinadas palavras.
foi assim que descobri esta tendência para
inclinar a cabeça para mais perto
de um dos ombros enquanto
morro,
por segundos, ao ler nesta descrição de livros alinhados
nas estantes, roupa dobrada nos armários, família
em volta da mesa, os princípios de uma ordem
provisória, que não sobreviverá sem mim
ou, no pior dos cenários, me sobreviverá,
afinal, com tudo o resto,
sem sobressaltos e uma memória
finita.

colecciono fotografias de família, vendidas em alfarrabistas
por pouco dinheiro, como prova de que estamos
a uma ou duas gerações do esquecimento.
invento dedicatórias, parentescos, datas e locais,
espalho-as em molduras pela casa para confundir visitas
e me vingar de uma memória que me atraiçoa sem descanso
porque
este rosto me levou mais de três décadas a destruir,
para agora abandonar à sua sorte, sem a gentil companhia de
desconhecidos, na descida aos infernos pelos túneis
das estações de metro ou num café quase vazio
de Alcântara, a meio da tarde, quando as mesas estão reservadas
........ para os
que não têm ocupação ou pressa. os jornais do dia no balcão e
na parede do fundo o espelho convexo em que
Parmigianino e depois Ashbery se viram
sozinhos, rodeados de objectos, e a certeza de mais uma
morte fixada em auto-retrato.


Resumo: A poesia em 2010 [de Criatura, n.º 5], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

sábado, 28 de maio de 2011

ROSA MARIA MARTELO

LÍRIOS


Um dia deixarei para sempre o casaco no cabide da entrada
outras mãos que não as minhas haverá para o recolher
outros olhos pelos meus lhe hão-de fitar depois a ausência.
Depois, nem isso.
Há um momento em que se estende a toalha sobre a mesa dos mortos
como se tivesse sido sempre a mesa dos vivos. Esse dia virá.
Tudo então estará certo e limpo como o esquecimento.
Ou quase assim.

Dispo agora toda esta roupa e escrevo
– sem frio nem perda nem desastre –
a partir desse dia que virá, esse dia depois de mim:

lírios crescem no acaso vivo da relva
uma leve poeira se acrescenta ao ar que não respiro.


Público, Lisboa, 28 de Maio de 2011.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

TERESA M. G. JARDIM

LÂMPADA


Em torno de uma lâmpada de 60 W
como um pequeno insecto ataco as palavras,
vulnerável como um insecto
em torno de uma lâmpada de 80 W.



Resumo: A poesia em 2010 [de Jogos radicais], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

domingo, 22 de maio de 2011

RUI CAEIRO

O FÓSFORO


Já tens o cigarro preso nos lábios, buscas
o pau de fósforo que o acenda e justifique
Nesse preciso instante a garantia
do teu futuro ou a salvação da tua
alma não são, se é que alguma vez
foram, o problema crucial da tua vida
sequer uma questão prioritária, o magno
problema é o fósforo, mas onde pus eu
a caixa?, e quando por fim a encontras
se a encontras, extrais dela o almejado
couto de madeira, esfregas não tarda
a cabeça vermelha na lixa da caixa,
aproximas a chama do cigarro, sorves
com avidez e deleite – e essa coisa frágil
absurda, milagrosa, que uma vida
sempre é – e por que raio havia a tua
de ser diferente? – está nesse preciso
momento plenamente justificada.





Resumo: A poesia em 2010 [de Criatura, n.º 5], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

ANTÓNIO BARAHONA

ORIENTAÇÃO


Escrevi milhares de versos
para esquecer. Amei algumas mulheres
para lembrar. Agora já posso dizer
o som em carne viva.

A cidade assemelha-se a um acampamento
abandonado no deserto. Os nómadas
partiram nos seus camelos, com provisão
de tâmaras e água.
Há restos de detritos, sinais de trânsito,
folhas arrancadas a revistas pornográficas,
ao sabor do vento, por entre pétalas sêcas.

Há resíduos de sítios onde estive contigo,
fragmentos de versos de vidro, tudo
muito nítido, anotado, vincado a oiro.


O som do sôpro, Poesia Incompleta, Lisboa, 2011.

domingo, 15 de maio de 2011

HERBERTO HELDER

[OS CÃES GERAIS LADRAM ÀS LUAS]


os cães gerais ladram às luas que lavram pelos desertos fora,
mas a gota de água treme e brilha,
não uses as unhas senão nas linhas mais puras,
e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo cheia

..............................................................................[de ar e de areia
e de fogo,
e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,
e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível
contra a turva sede da matilha,
com tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, árduos buracos negros:
queres apenas
aquela gota viva entre as unhas,
enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros
à procura do ouro


Público, Lisboa, 14 de Maio de 2011.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

RENATA CORREIA BOTELHO

A SETA


para o meu pai

o tempo, espelho tosco com que
fintamos a morte, apontado para nós
como a lança do arqueiro;

hesita, por um instante apenas,
para depois avançar, implacável
e sem retorno, na nossa direcção.

mas a feroz verdade da seta
(a um brevíssimo suspiro do embate)
é aplacada pela memória,

um libertador bater de asas
que nos recolhe das águas
quando a tempestade nos arrasta.


Resumo: A poesia em 2010 [de Small song], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

sábado, 7 de maio de 2011

MANUEL DE FREITAS

PASTELARIA LUSÍADAS



para o Rui Pires Cabral

Não se explica, certamente,
o peso camoniano do primeiro
encontro, palavras sem açúcar
nem café. E logo nós,
tão avessos a soluços épicos,
ao rigor da claridade,
às fúteis manobras da sombra.
Logo nós, relógio esquecido nos bolsos.

Ficámos de regressar à música,
sem certezas. A não ser,
talvez, um prelúdio de Chopin
incapaz de desmentir a chuva
e o brusco entardecer de Alcântara.

Palavras; dobrada folha de zinco
separando-nos da morte.


Blues for Mary Jane, & etc, Lisboa, 2004.