quinta-feira, 31 de março de 2011

ARMANDO SILVA CARVALHO

SE TU POTEVI, O SOL DA QUELLA VISTA


Meu caro, a inércia é filha do frio, este filho do tempo,
Pai de todos os males.
Tenho dentro de mim um meteorologista
Disfarçado de poeta húmido.

O sol que tanto reverenciei em puro êxtase,
E cantei como se ele fora
A aurora do futuro
Mudou-se por mim em lua despeitada.

Esconde-se essa senhora,
Umas vezes altiva, outras vezes submissa,
Troca de face, de porte, de vestido,
Não me sabe entender no meu pensar sisudo.

Não sabe ou então sabe de mais,
Que a minha cabeçorra não vislumbra a ciência
Que ma desvela pálida,
Ou amareladamente inquietante.

Emimesmado estou, que é o mais correcto
Para quem de si só cuida conhecer o pouco
Que os deuses autorizam. Não durmo, não me atino
E queixo-me de tudo.


Resumo: A poesia em 2010 [de Anthero, areia & água], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

terça-feira, 29 de março de 2011

ANTÓNIO BARAHONA

PULSAÇÃO


Perene é ser soneto: eis do futuro,
essa canção com oitocentos anos:
sábios, mil sons ecoam bons sopranos,
no timbre d'árias tensas de ouro puro.

Catorze versos a fundir degraus
(ligas de cobre e prata e elixir)
refeitos pra durar até que expire
seu último cantor, à flor do caos.

Perene é ser soneto, que reside
na cópia à rasa essencial do verbo:
tal como a roda, o cubo e o triângulo,

vem inscrito no código soberbo
de quem tece um casulo e sente livre
o sopro do seu sangue num coágulo.


Resumo: A poesia em 2010 [de Criatura, n.º 5], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

sábado, 26 de março de 2011

ADÍLIA LOPES

[NESTE DIA CINZENTO]


Neste dia cinzento
procuro um verso
e não encontro
não tem importância


Resumo: A poesia em 2010 [de Apanhar ar], org. José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

terça-feira, 22 de março de 2011

MANUEL VAZ DE CARVALHO

FUNERAL


Meu velho cão, quero que vás ao meu enterro!
Mas nada de lamúrias, a uivar...
Irás contar quando, de serro em serro,
Apátridas, libertos, par a par.

Por fragadas do demo e da esconjura
Vales dormentes, touceiros devassando,
À senda, nem eu sei, de que aventura,
Fomos na vida efémera sonhando...

Irás! Quero levar de perto o teu focinho!
E ao voltares, de olhos tristes, ao teu ninho
Terás sempre presigo e regalia...

E se quem me ficar for de justiça
Terás também inteira a linguiça
Da qual só te calhava a pele vazia.


Poemas do Solstício, Câmara Municipal de Vila Real, 2000.

sexta-feira, 18 de março de 2011

ANTÓNIO SALVADO

NESGAS DO AZUL


Não sei se a tua voz, ou se o murmúrio
do fim da tarde que se ouvia quase
como uma gota d'água que tombasse
em calmo lago ali alheio e mudo.

Nossos olhos retinham o crepúsculo
que lentamente audaz se aproximava
e pelo céu ainda alavam pássaros
que sulcavam as nesgas do azul.

Foi um momento singular aquele
em que os sentidos todos reunidos
apelavam ao gozo do silêncio:

um instante perene de certeza
de que era fogo aquilo que vivíamos,
que não se via: bramidor ardendo.


Saudade: Revista de poesia, n.º 11, Associação Amarante Cultural, Amarante, 2009.

segunda-feira, 14 de março de 2011

EDUARDA CHIOTE

ACEITAR A PERDA


Estou a morrer e ninguém me diz se por desuso
ou educado
esquecimento.
Para onde, em segredo
deserto.
Ouve: quem sou?
O que é um poeta? Uma criança,
filha
da rima
a quem se diz não fales com a boca cheia? Tira os cotovelos
de cima da mesa?
Tantas palavras. Muitas são as que não distingo.
Branco,
por exemplo.
Embora escute branco como a neve,
uma mortalha,
o leite: Acaso, branca, a fome masculina
do teu seio
também? — Pensava que o desejo era branco.
Mas branco, branco, terrivelmente branco,
apenas o olhar
que vendo se vê demasiado
e em pura crueldade
e indiferença,
ó morte — única mãe.


Poemas portugueses [de O meu lugar à mesa], org. Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora, 2009.

quinta-feira, 10 de março de 2011

MIGUEL-MANSO

O FOGO, A CIDADE


às vezes sobre
as palavras pesa um dia luminoso, a clara
imprecisão de um gesto
o corpo inclina-se para a água
do poema

a roupa estas mãos o torpor da casa
quando o silêncio a morna demorosa voz
se desfazem no ritmo entontecido
do mundo

caminho descalço sobre a página
olho uma outra vez
voltando-me para trás
o fogo, a cidade


Quando escreve descalça-se (3.ª edição, revista), Trama, Lisboa, 2011.

sábado, 5 de março de 2011

MANUEL DE FREITAS

MÁRIO


"O tempo que aos outros foge
cai sobre mim feito ontem",
como dizia o outro
que não consentiu em sê-lo.
E nestes tempos de rarefacção
e escárnio uma glosa pode às vezes
dar um jeito danado — para
aqueles que ficam, claro.

Ah, Mário, quantos eléctricos
eu apanhei ou perdi
em frente à lápide sóbria
que celebra não sei se a ti
se ao abandono corriqueiro
de um escritório de aluguer...
Coisas da vida, entenda-se,
os percursos e os discursos
que confluem no trânsito homicida
de um dia qualquer, como os outros.

Enquanto Lisboa se resigna
a ser esta mistura podre
de melancolia e paz
que para mim está bem
e vai dando
para a curta viagem dos ossos.

Nos Cafés também "espero a vida
que nunca vem ter comigo",
a putéfia. Nada mudou. Nada,
Mário. Só que nos "Cafés", agora,
pedem-se empréstimos para comprar
carro e casa ou manuseiam-se discos
por sinal merdosos, propícios
a uma época que voa ao rés da Bolsa.
A vida, claro, continua sem aparecer por aqui.

Mas lepidópteros ainda há,
uivando de alegria alegre — e restos
de nada nas coisas, a chamarem-nos de tão longe
para a proximidade do fim.

Era só para te dizer isto.


Game over, & etc, Lisboa, 2002.