domingo, 28 de fevereiro de 2010

A. M. PIRES CABRAL

NO CASTELO DE ANSIÃES


Demais sei eu que o que passou passou,
a história não é uma serpente
que se refaz em cada primavera,
mas quando muito morde a própria cauda;

que os que aqui moraram já nem ossos são,
soprou sobre eles o tempo
e extinguiu o pouco fogo que eram;

que cessou todo o ruído, de festa ou de querela,
dissolvido no ácido dos dias;

que os lugares onde acaso podia ter ficado
impressa alguma pegada acidental,
algum risco na pedra com vocação de história,
estão ocultos por silvas e aveia brava.

Demais eu sei que os horizontes
que vamos recolhendo do alto das muralhas
com as afectuosas pinças da alma
– contrariamente aos que moraram e morreram –
permanecem os mesmos:
perpétuo desafio ao vento e ao olhar.

Então, se tudo isso sei:
carne friável, minerais perenes;

e se com tudo isso me conformo, como homem
sobre quem também soprará
o tempo e está disposto a perdoar;

porquê esta água insubmissa
que devagar me molha o reverso dos olhos?


Novas Memórias de Ansiães (com Manuel de Freitas, Rui Pires Cabral e Vítor Nogueira), Averno, Lisboa, 2007.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

MANUEL GUSMÃO

VARIAÇÕES DO BRANCO


Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva

Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco

Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.

Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.

Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:

As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.

Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verso, do oiro e da prata – uma lembrança vã.

Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada

que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve –
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros

das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá


Migrações do Fogo, Caminho, Lisboa, 2004.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

EDGAR CARNEIRO

ENLEIOS


Que direi de enleios,
galanteios ternos
prematuro voo
da miragem tonta?

Onde estão represos
os murmúrios de água
deslizando lenta
no dossel dos montes?

Já não sinto as aves
nem sequer as penas
adejando soltas.

Quanto às águas sei
ir morrer de sede
mesmo vendo as fontes.


Périplo, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, 2009.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA

SE


Se tiver medo, não posso
atravessar esse bosque,

todas as copas das árvores
hão-de ladrar aos meus pés.

Até a lua por certo
com veneno cor do leite

à socapa vem morder-me
na ponta do calcanhar.

Se tiver medo, não posso
atravessar esse bosque,

as ervas hão-de ceifar-me
antes mesmo de morrer.


Obsessão, & etc, Lisboa, 2010.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

JAIME ROCHA

POEMA UM DO SEGUNDO CICLO DA MÚSICA


A música regressa como um fio de sangue
arrastado pelo mar. Uma mulher aguarda
essa água que transforma as plantas e os
ombros num jardim. Tudo se passa depois
do silêncio, depois da fuga das aves para
o fundo de uma ilha. É ela que descobre os
ninhos e as cavernas onde habitam os peixes.
E nessa viagem os seus vestidos cobrem-se
do musgo e dos sons gravados nos rochedos.
Um homem contempla as árvores que defendem
as casas do ataque das ondas. O seu corpo é o
eco das marés, da lua que se esconde por detrás
de um grande morcego.


Divina Música: Antologia de Poesia sobre Música, org. Amadeu Baptista, Conservatório Regional de Música de Viseu, 2009.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

ARTUR ALEIXO

NIRVANA


Bleach, Nevermind, In Utero,
Incesticide. Os Nirvana haviam sido
um estado de alma. Uma imprudência
feliz da juventude, cantada como desejo
e assim mantida na memória.

Ouvimo-los de novo no trajecto
flutuante: Cacilhas – Cais do Sodré.

Acabaríamos o curso no ano seguinte
e como calculávamos: juntos
e infelizes para sempre. A certeza,
entre outras inauditas, separou-nos.

Num espaço menos devastador – afinal,
sem ti – recuperei outras músicas,
alguma compreensão do mundo.


Divina Música: Antologia de Poesia sobre Música (de My Heart Could Only Walk), org. Amadeu Baptista, Conservatório Regional de Música de Viseu, 2009.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

ANTÓNIO GREGÓRIO

SUÍTE NÚMERO SEIS


É um grande incómodo não saber tocar
violoncelo que o pranto seria doutra
condição: ela gravíssima procurando
pela sala quieta de vez em vez sobre
o parapeito procurando procurando
na lida da luz entre as ramagens a nossa
sentença enquanto eu antecipado – a dor
em arco – ressumava contra as cordas o
adeus.

E a tristeza imensa ser-me-ia então como
tijolo de subir paredes ao invés
desta mais triste ainda – se nunca lhe achei
o préstimo – que por dentro vai corrompendo
corrompendo; podia dá-la já pensei
nisso: que talvez ma aceitasse o senhor
Rostropovitch.


Divina Música: Antologia de Poesia sobre Música (de American Scientist), org. Amadeu Baptista, Conservatório Regional de Música de Viseu, 2009.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

VASCO GATO

[NÃO DEVEMOS SER FORTES]


Não devemos ser fortes quando está em causa a transfiguração. Há uma espécie de força que é uma espécie de fraqueza, e uma espécie de fraqueza que é uma espécie de força. Como distinguir? Se no pescoço se notar o vinco da corda é porque não estamos a viver.


Omertà, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2007.